As torcidas organizadas do Recife nasceram com propostas bem diferentes da imagem que passam atualmente. Quando surgiram, na década de 1980, elas nem de longe lembravam no que se transformaram ao longo do tempo. Segundo os fundadores da Torcida Jovem, Inferno Coral e Fanáutico, o principal objetivo dos grupos era simples: promover a maior festa possível. A competição se resumia a saber quem cantaria mais alto, levaria mais bandeiras ou sacos de papel picado às arquibancadas. “O intuito era, exclusivamente, apoiar o clube, independentemente da situação em que ele estivesse. Perdendo ou ganhando, estávamos lá, seja qual fosse a circunstância”, afirmou o hoje médico Murilo Campelo, fundador da Fanáutico.
O comportamento pacífico começou a mudar quando os grupos quiseram ter maior participação na vida social do clube, além do direito de contestação. “Determinados torcedores queriam fazer cobranças às diretorias, dirigentes e cartolas do clube visando melhores resultados do time, em vez de apenas incentivar os jogadores”, afirmou Maurício Murad, doutor em Ciência do Desporto pela UFRJ e autor dos livros “A violência e o futebol: dos estudos clássicos aos dias de hoje” e “Para entender a violência no futebol”.
>> ESPECIAL - Dossiê organizadas
No fim dos anos 1990, no entanto, as organizadas começaram a tomar rumos inimagináveis e incontroláveis. Naquele período, os recifenses, já conhecidos pelo seu bairrismo, viviam um forte processo de identificação com os locais onde moravam. Segundo estudiosos, exemplos disso são o surgimento do movimento Manguebeat, liderado pelo cantor Chico Science, e o crescimento de movimentos musicais de forte influência social, como os bailes funk.
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“De uma maneira geral, houve um entrecruzamento de um movimento juvenil surgido nos Estados Unidos, com uma forte identificação entre os jovens das periferias brasileiras e uma movimentação cultural surgida em Pernambuco”, afirmou o mestre em História e Cultura pela UFRN, Francisco Nascimento.
Numa primeira análise, estas questões não parecem ter qualquer relação com o futebol, no entanto, mudaram drasticamente o modo de atuação das torcidas organizadas recifenses. Não por escolha, mas despretensiosamente. “Há um grande crescimento do número das torcidas a partir dos anos 1990. A cada jogo havia uma torcida nova, representado um bairro específico. Com isso, por um lado, há um aumento nas brigas, mas, por outro, há o reconhecimento das lideranças entre si e um incipiente processo de politização”, comentou o sociólogo da Fundação Getúlio Vargas, Bernardo Hollanda.
Todavia, a soma: bairros + bailes funk não deu certo. As festas acabaram se tornando um pretexto para o confronto entre bairros rivais no Grande Recife. Com a proibição das festas, imposta pelo Ministério Público de Pernambuco (MPPE), no início dos anos 2000, os jovens acabaram transferindo o seu lazer para as torcidas organizadas. Além das brigas internas dentro da própria torcida, a rivalidade clubística se tornou apenas uma fachada para a troca mútua de agressões.
“Muitos participantes dos bailes funk, que não tinham mais como fazer parte daquela sociabilidade, migraram para as torcidas organizadas. Ou seja, a rivalidade que já existia entre os bondes (galeras), nos bailes, é reproduzida nas arquibancadas”, disse o mestre em Antropologia da UFPE, Eduardo Araripe, que desde 2012 estuda sobre as torcidas organizadas de Pernambuco.
UM REFLEXO DO DESCASO
Violentados muito antes de saberem o que é um estádio. No entendimento dos estudiosos, os vários crimes cometidos pelos integrantes das torcidas organizadas são um reflexo dos crimes que a sociedade cometeu contra eles, como falta de assistência à saúde, péssimas condições de ensino e ausência de perspectivas profissionais.
O mestre em Antropologia pela UFPE Eduardo Araripe disse que, antes de julgar, é preciso entender o perfil e o contexto dos componentes das facções. “Basicamente são jovens de 15 anos, na maioria provenientes de classes subalternas nas periferias, com dificuldade de acesso ao estudo, saúde e mercado de trabalho. Eles têm um histórico familiar marcado pelo consumo de drogas, alcoolismo, ou seja, carregam uma desestruturação desde que nasceram”, afirmou.
E é justamente na tentativa preencher esse “vazio social” que muitos jovens decidem entrar nas organizadas. “Nas comunidades eles não têm nenhuma representatividade social, são apenas mais um, e nas organizadas encontram acolhimento. Então é uma pessoa que sai de uma condição de anonimato e ganha destaque dentro daquele grupo. Muitos esperam a semana inteira o dia do jogo porque, naquele momento, eles têm um papel de relevância, seja ficando com a bandeira, tocando um instrumento ou puxando os gritos. Ele começa a frequentar a sede da torcida como se fosse seu ambiente de trabalho, então a torcida passa a ser o motivo da sua vida”, afirmou Araripe.
Diante da agressão social que sofreram desde a infância, esses jovens aproveitam o momento da coletividade das torcidas para dar o “revide”. “Essa violência nada mais é do que a manifestação de sentimentos de revolta contra a sua situação social e econômica e contra o Estado, que não oferece mínimas condições de ascensão”, pontuou o pesquisador Túlio Velho Barreto. Nesse contexto, as práticas criminosas também são vistas como uma distinção entre os grupos. “Uma grande parcela desses grupos passou a cometer os atos para chamar a atenção, para ter mais visibilidade. E aí começa aquela disputa simbólica: Quem quebra mais? quem causa mais o terror? quem intimida mais o outro?”, detalhou Araripe.
Por isso, é que os estudiosos não se referem a uma violência do futebol, mas sim no futebol. “A violência está na sociedade e nas pessoas, o futebol é só mais um palco onde ela se reflete. Por trás desses atos existe uma violência estrutural, da falta de condições de vida e oportunidades. Claro que não podemos ter uma visão reducionista pois, em alguns, existe também o querer praticar esses atos, mas a gente tem que entender o por quê deles serem levados a isso”, disse Araripe.
ORGANIZADAS PEDEM AJUDA
Os líderes das torcidas organizadas reconhecem que as facções cresceram desordenadamente e pedem ajuda. Ou seja, as próprias pessoas que, em tese, deveriam ter o poder sobre as facções, admitem que a situação está fora de controle. “Realmente a gente precisa de ajuda. Nos tornamos muito grandes, começamos com um grêmio de 100 pessoas e hoje somos 10 mil, e vivemos em uma sociedade violenta. Estão influenciando dentro das organizadas a rivalidade de bairros, e as brigas de galeras. Sempre sobra pra gente da diretoria”, se defendeu o vice-presidente da Inferno Coral, Amilton Lima, conhecido como Buiu.
Segundo ele, assim como também reiteraram os estudiosos ouvidos pela reportagem, o problema se agravou com o fim dos bailes funk no Recife, imposto pelo Ministério Público de Pernambuco. “Com o fim dos bailes, eles ficaram sem ter onde brigar e viram nas organizadas um espaço pra isso. A gente tinha controle da torcida até aí, depois que acabaram os bailes, a rivalidade dos bairros foi parar nos estádios”, explicou Amilton Lima.
Outra surpresa, no contato direto com os líderes, foi constatar que, ao contrário do que naturalmente se imaginaria, eles não se tratam como inimigos mortais e se comunicam frequentemente. Até grupo no Whatsapp eles têm. “Essa cooperação veio depois de um encontro da Associação Nacional de Torcidas Organizadas (Anatorg) e a gente está sempre em contato, principalmente em dias de clássicos. Pra não rolar encontro das torcidas, a gente combina antes os horários e o jeito de ir pros estádios, quem vai de ônibus ou quem vai de metrô. Tudo pra amenizar esse clima de tensão que fica na cidade”, explicou o diretor da Fanáutico, Rafael Bezerra.
Essa aproximação entre as torcidas, no princípio, não foi fácil, segundo as lideranças. “A gente se deu conta de que precisávamos conversar. As nossas torcidas estavam punidas há anos e, dando tiros nos próprios pés, nunca iriam voltar a ser liberadas. Então sentamos juntos. Foi uma quebra de gelo, porque havia ainda muitas feridas abertas. A gente não tinha a ilusão de que uma decisão tomada ali em uma mesa iria resolver a questão da violência de uma vez, mas com ações pequenas conseguimos dar alguns passos pra isso”, contou o diretor da Torcida Jovem Túlio Lima Xavier.
O ponto mais citado na conversa com os três líderes foi o que eles classificaram como perseguição. “É revoltante ver que toda vez somos colocados como os vilões pela violência no futebol. O problema não é uma camisa, não é ela que vai pegar uma pedra e jogar numa pessoa. E sim a pessoa que está vestindo e é essa pessoa que deve ser punida, não a torcida como um todo”, defendeu Túlio. Eles reclamam que só são retratados de forma negativa. “Pouca gente sabe que temos ações sociais como aulas de Muay Thai, doações de sangue, de alimentos. Se eu quebrar um ônibus chegam dez carros de reportagem, se eu convidar pra fazer a cobertura de entrega de cestas básicas não aparece ninguém”, se queixou Buiu.
Pelo menos no discurso, as organizadas se dizem também empenhadas pela paz. “O que a gente quer de verdade é fazer aquela festa na arquibancada, apoiar o time em um jogo em que você possa levar seu filhinho tranquilo porque estádio é lugar de família”, garantiu Rafael.