“Os prejuízos foram da irreparável perda de duas vidas humanas a toda uma memória que se transformou em cinzas. É muito triste chegar lá, lembrar de como a base era ativa e ver que boa parte dela virou escombros.” A impressão do capitão de mar e guerra Marcelo Seabra, que conversou com a reportagem do Jornal do Commercio em Punta Arenas (Chile), sintetiza o sentimento de quem voltou à Estação Antártica Comandante Ferraz (EACF) neste verão. Quase um ano depois do incêndio que destruiu 70% da estrutura da base brasileira no continente gelado e matou dois militares, aos poucos, o cenário desolador começa a abrir espaço para o esboço de uma nova residência do País na Antártida. A Marinha e o Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) lançaram ontem, no Rio de Janeiro, um concurso para selecionar o projeto arquitetônico das novas instalações da base. Uma “casa” que deve se apoiar sobre três pilares: segurança, conforto e sustentabilidade.
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Os detalhes técnicos da licitação serão publicados no Diário Oficial na próxima segunda-feira (28). A partir daí, arquitetos brasileiros ou estrangeiros associados a escritórios do País terão até o dia 14 de março para inscrever suas propostas no sitewww.concursoestacaoantartica.iab.org.br. “A ideia é fazer da estação uma referência, principalmente em relação aos aspectos de inovação tecnológica”, diz o presidente do IAB, Sérgio Magalhães. A energia utilizada no funcionamento da base, por exemplo, deve vir de fontes renováveis. A data de anúncio do resultado da seleção ainda não foi divulgada, mas não deve demorar. É que a reconstrução começa em novembro, com conclusão prevista para fevereiro de 2015. Baseada em experiências de outros países com mais tradição no ambiente polar, a coordenadora para Mar e Antártica do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), Janice Trotte Duhá, acredita que o processo, na verdade, pode se estender até 2019. “O Canadá está construindo uma estação no Ártico, cujo cronograma aponta para sete anos de trabalho. Não conseguiria estimar um período inferior a esse para o caso brasileiro”, explica.
Até lá, as pesquisas científicas – principal razão da presença do Brasil na Antártida – se desenvolverão em paralelo às obras. A maioria das atividades ocorre durante as chamadas Operações Antárticas (Operantar) realizadas nos meses de verão, de outubro a março, quando a temperatura chega até 5ºC e os ventos são mais amenos. No inverno, de abril a setembro, as condições climáticas severas (até -25°) inviabilizam as saídas de campo. Hoje, o País desenvolve 19 projetos na Antártida, além de manter dois Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia dedicados aos estudos no continente: o Antártico de Preservação Ambiental (INCT-APA) e o da Criosfera (INCT da Criosfera).
Cerca de 70% das investigações não sofreram interrupções e já retomaram suas atividades em navios da Marinha, nos dois refúgios (mini-estações) localizados nas Ilhas Elefante e Nelson, na Base Antártica Câmara, cedida pela Argentina na Ilha Livingston, e no Criosfera 1, ponto avançado próximo ao Polo Sul, dentro do continente antártico. “O percentual de prejuízo decorrente do incêndio foi inferior a 10%, porque muitos dados já haviam sido enviados para computadores e laboratórios no País”, diz Janice Duhá. Segundo a coordenadora do INCT-APA, Yocie Yoneshigue, os projetos mais afetados foram os de biociências, que se utilizam de uma expressiva quantidade de coleta de materiais.
ESTAÇÃO PROVISÓRIA
Tanto esses quanto os demais estudos que dependem da base deverão ser tocados a partir da próxima temporada 2013-2014 na própria área da Estação Comandante Ferraz, localizada na baía do Almirantado, na Ilha Rei George (ver mapa). Lá, estão sendo montados 29 módulos emergenciais, pouco menos da metade dos 63 que a EACF possuía antes. Instalada pela empresa Weatherhaven Canada Resources, a estrutura provisória terá capacidade de acomodar cerca de 60 pessoas, contando com dormitórios, banheiros, refeitórios, cozinha, laboratórios, enfermaria e geradores, além de estações de tratamento de esgoto e área de armazenamento de resíduos. “Serão empregadas as mais novas tecnologias resistentes ao fogo e dentro dos padrões de segurança para a operação na Antártida”, destaca o contra-almirante José Roberto Bueno Junior, diretor do Centro de Comunicação Social da Marinha.
Também estarão disponíveis as estruturas isoladas do prédio principal da EACF que permaneceram intactas após o incêndio. Caso dos refúgios de emergência, dos laboratórios de meteorologia, química e estudo da alta atmosfera, da Estação Rádio de Emergência e do heliponto. Escaparam ainda do fogo tanques de combustíveis e dois módulos de captação de água doce. Durante o inverno, 15 militares do Grupo Base da Marinha, responsáveis pela manutenção da estação e apoio às pesquisas, já permanecerão na Antártida ocupando os módulos, à espera dos cientistas no próximo verão.
A preparação do terreno da nova base envolve 76 pessoas, entre civis e militares, que trabalham no desmonte da EACF. Iniciada em novembro, a remoção da parte incendiada foi concluída no último dia 12, informa Bueno Junior, com a retirada de 800 toneladas de destroços, que voltarão ao País no mês de abril. De acordo com o Ministério do Meio Ambiente (MMA), todo o trabalho segue as normas estabelecidas em tratados internacionais. “As diretrizes para a elaboração do plano de desmonte pautaram-se no princípio da precaução, considerando que todos os materiais removidos podem estar contaminados, o que sugere tratá-los como perigosos”, afirma a analista Jaqueline Madruga. A próxima etapa será a limpeza da área.
Para erguer uma estação no “estado da arte”, a verba prevista é de R$ 100 milhões. Na avaliação da comunidade científica, se for acompanhada de um aumento dos recursos para pesquisa, a nova base elevará a um patamar de vanguarda o Programa Antártico Brasileiro, que completou 31 anos este mês.