O que explica o aumento da temperatura do mar na costa do Nordeste nos últimos 40 anos? Como os organismos presentes em águas geladas podem servir de fontes de bioativos para novos fármacos, inclusive de combate à dengue? Em quais circunstâncias são originadas as frentes frias que provocam prejuízos às lavouras no sul do Brasil e chegam até a Amazônia? Que processos levaram ao depósito de hidrocarbonetos no litoral brasileiro como os encontrados no pré-sal?
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As respostas para essas e muitas outras questões complexas que têm implicações diretas sobre o clima e a vida em todas as regiões do País podem vir da Antártida. O continente branco está mais perto de nós do que faz supor a dificuldade em alcançá-lo. E não só do ponto de vista geográfico. Os fenômenos naturais que lá ocorrem têm consequências palpáveis sobre o território nacional. “Somos o sétimo país mais próximo da Antártida. Os padrões de chuva aqui são influenciados pela variabilidade do gelo marinho antártico. E recentemente descobrimos que a intensificação dos ventos de oeste que giram em torno do continente (uma das consequências da redução do ozônio) afeta a temperatura do Atlântico Tropical, com impacto na taxa de crescimento de algumas espécies de corais”, atesta o professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro Heitor Evangelista, geocientista e pesquisador do ambiente antártico há mais de 20 anos.
A via de mão dupla que une o continente austral ao Brasil é um dos fatores que justificam o trabalho científico na Antártida. “Os sistemas são interligados. Também começamos a ter sinais de que queimadas na América do Sul estão poluindo a atmosfera antártica”, explica o PhD em glaciologia e diretor do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS), Jefferson Simões. O pesquisador ressalta que outro papel da ciência no território gelado é político. Isso porque é a qualidade dos estudos desenvolvidos que define o status de um país dentro do Sistema do Tratado da Antártica, do qual o Brasil é signatário. O conjunto de acordos internacionais determina a constante atividade científica dos países-membros e a preservação da região como território neutro dedicado à pesquisa, à cooperação internacional e à paz. “Dispor de estudos robustos significa ter voz ativa em todas as decisões relativas a uma região que representa 10% da área do planeta e é repleta de riquezas naturais e minerais”, corrobora Janice Trotte Duhá, do MCTI.
Diante dessa perspectiva, o incêndio na base Comandante Ferraz teve pelo menos um aspecto positivo, na opinião de Jefferson Simões. A oportunidade de reestruturar, traçar um programa estratégico e apontar novas metas para o Programa Antártico Brasileiro (Proantar). Nesse replanejamento trabalha o Comitê Nacional de Pesquisas Antárticas, composto por cientistas de diversas instituições do País.
O documento, que será apresentado em março, reorganiza o programa em cinco áreas de vanguarda que incluem estudos sobre a influência da massa de gelo no sistema climático; a conexão entre as mudanças atmosféricas e a circulação oceânica; a biodiversidade e seu processo de adaptação a condições extremas; a interação do ambiente polar com o campo magnético terrestre; e a relação entre evolução do Gondwana (o supercontinente que agregava as massas de terra do Hemisfério Sul) e o desenvolvimento das plataformas continentais.
O caminho para transformar a proposta em ação começa pela garantia de recursos regulares para o Proantar – o subfinanciamento e a instabilidade das verbas são seu maior percalço. “É extremamente precário o orçamento do programa. Infelizmente, o debate sobre ele só foi ter importância na Câmara Federal depois do incidente do ano passado. Mas antes tarde do que nunca”, dispara a vice-presidente da Frente Parlamentar de Apoio ao Programa Antártico Brasileiro, deputada Jô Moraes (PCdoB-MG). Composta por 54 senadores e 121 deputados, há cinco anos a frente funciona como instrumento de pressão e mobilização para aumentar o investimento do País no continente gelado.
A comunidade científica estima algo entre R$ 5 milhões e R$ 8 milhões o orçamento anual necessário somente para a ciência, sem contar os custos com logística, que representam 80% do Proantar. Comparando com os países emergentes do Brics, o Brasil é o que menos investe na pesquisa antártica, com uma média histórica de pouco mais de R$ 2 milhões ao ano. Já a China gasta cerca de US$ 11 milhões (aproximadamente R$ 22 milhões).
“O valor que projetamos daqui para frente é para nos permitir em seis a oito anos ser um centro de referência em entender a importância da Antártida para o Hemisfério Sul, já que somos os mais afetados pelas suas variações climáticas. Não podemos perder essa liderança”, detalha Simões. Para bom entendedor: é a condição mínima para o País não ver congeladas suas pretensões futuras sobre o continente branco.