O sexo da jornalista e artista performática pernambucana Kalor aparece por dois segundos no início da obra Certidão de Aborto, apresentada durante o Festival de Inverno de Garanhuns (FIG), que exibe fotografias de bebês, moedas e tintas vermelhas durante nove minutos. O vídeo é uma crítica dolorosa a um problema social que Kalor conheceu de perto quando perdeu um filho depois de tentar atendimento em várias unidades de saúde do Grande Recife, em junho de 2013. Faz parte da série Tecnologia a Serviço da Orgia, que busca contrapor a hipersexualização do corpo feminino. Na cidade onde ela trabalha como gestora cultural, o trabalho virou arma de embate eleitoral quando grupos de oposição à atual administração começaram a compartilhar imagens isoladas das performances para atacar a gestão.
O uso da nudez como linguagem política em obras de arte está no fronte de uma celeuma desde o boicote da exposição Queermuseu e as acusações de pedofilia contra a performance La Bête, do coreógrafo Wagner Shwartz, no MAM, em que uma criança sob supervisão da mãe interagiu e tocou no artista nu. As investidas de caráter moralizante partiram do Movimento Brasil Livre (MBL), o grupo com mais sucesso eleitoral dentre os que surgiram dos protestos pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT).
Em nota enviada ao JC, o núcleo pernambucano do MBL diz considerar um escárnio que se use dinheiro do contribuinte para promover ações que militam pela destruição de valores. Argumenta que não é prudente expor crianças a adultos nus pois essa situação pode confundi-las e deixá-las suscetíveis ao abuso. “O povo brasileiro é contra a pedofilia e o abuso infantil, por exemplo, e apesar de sabermos que alguns nichos culturais não se importam com isso, nós não deixaremos nossos valores serem desconstruídos com uso do nosso próprio dinheiro”, promete.
A nudez não é invenção da arte moderna. Ela está presente em quadros e esculturas há séculos. Para Roberta Ramos, professora do Departamento de Teoria da Arte da UFPE, o significado da nudez em uma obra sempre precisa levar em consideração o contexto, a época e o tema trabalhado pelo artista. “Vimos um grupo da sociedade civil estimulando interdições que podem contribuir para que o Brasil volte a ter dispositivos de censura”, alerta.
O papel político do corpo nu também não é novidade para movimentos por direitos civis e liberdades individuais. “A fantasia sem blusa traz esses questionamentos sobre até onde o corpo da mulher é sua propriedade. Quando a mídia quer vender alguma coisa, a mulher pode estar nua. Mas quando ela quer ser exibida, ela é vulgar. Estar sem blusa quando eu quero é uma forma de manifestação política”, afirma Dandara Pagu, do coletivo feminista Vaca Profana, que promove intervenções com os seios à mostra.
O trabalho de Kalor e surgiu após uma residência artística promovida pela Associação de Prostitutas de Minas Gerais, no ano passado. Ela conta que a curadoria sempre tomou o cuidado de evitar adolescentes e jovens com menos de 18 anos nos ambientes em que foi exibida. “A polêmica é difícil porque vinte pessoas no Facebook passam a discutir apenas o corpo nu e arte enquanto a gente deixa de debater um tema mais amplo como a política nacional”, diz a artista.
O embate de posições sobre o tema pode ir ao extremo. Uma funcionária do MAM foi agredida com um soco em uma manifestação. Para a curadora da arte contemporânea Cristiana Tejo, os cuidados foram tomados pelo MAM, que sinalizou que a obra envolvia nu artístico. Ela lembra que a mãe, também artista, acompanhou a filha durante a interação com o artista. “O real crime foi a divulgação da imagem desta criança e de sua mãe. Ela perdeu a privacidade e a mãe está sendo ameaçada de morte. As pessoas sequer compreendem o que é pedofilia. E fecham os olhos para o fato de que ela ocorra justamente por gente vestida e de dentro da família”, argumenta.
Em meio ao aquecimento do debate sobre nudez e obras artísticas, o ministro da Justiça, Torquato Jardim, anunciou o interesse em mudar o sistema de classificação indicativa existente no Brasil. O colega da Cultura, Sérgio Sá Leitão, quer que o sistema valha também para exposições. Museus e entidades de artistas também têm procurado se unir para melhorar a aplicação da autoclassificação, já que o Departamento Nacional de Justiça e Classificação se debruça apenas sobre cinema, TV, vídeos, jogos e aplicativos.
Para o psicólogo e juiz da Infância do Recife Elio Braz Mendes, a classificação por faixa etária já é suficiente para orientar os pais sobre quais conteúdos devem ser vistos pelos filhos. O magistrado lembra que, sem a companhia dos pais, as crianças e adolescentes não têm acesso a conteúdo acima da sua idade. E que, mesmo com os responsáveis, eles só são permitidos em espetáculos e exposições da faixa etária imediatamente superior. “No caso dessa curadoria (do MAM), entendo que não foi nudez erótica, foi artística. Os fundamentalistas de plantão têm feito interpretações errôneas. Embora crianças não devam tocar estranho algum, sendo vestido ou não”, afirma o juiz.
O MBL diz que houve crime previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). “A nossa lei não tolera pedofilia nem erotização precoce de crianças”, afirma o movimento. “Nossa lei proíbe, também, o vilipêndio ao culto, e nós queremos respeito à fé cristã! Hóstia vilipendiada pode até ser arte, mas também é crime”, defende. O MBL nega promover censura e defende o boicote como ação legítima, pacífica e extremamente eficaz. “Quando o povo organizado e majoritário perder o seu poder de boicotar aquilo que julga como mau, estaremos numa ditadura”, afirma o grupo.
Segundo o advogado criminalista Yuri Herculano, os artigos 240 e 241 do ECA, que tratam de pedofilia, fazem menção ao sexo explícito ou pornografia envolvendo crianças e adolescentes. Já o artigo 217 do Código Penal, que tipifica o crime de estupro de vulnerável, exige a conjunção carnal ou ato libidinoso, sendo este caracterizado pelo ato de satisfação do desejo sexual. “No contexto criminal, não há muito o que se questionar. O questionamento diz mais respeito à classificação indicativa e à presença da criança, do que a um caso de pedofilia ou estupro de incapaz, o que eu vejo como um exagero”, explica.