Quando assinou o livrinho da Constituição como um de seus autores, o deputado pernambucano Gonzaga Patriota não botava fé em uma das confissões feitas por Ulysses Guimarães ao promulgá-la. “Não é a Constituição perfeita. Se fosse perfeita, seria irreformável. Ela própria, com humildade e realismo, admite ser emendada”, discursou Ulysses no dia 5 de outubro de 1988. Trinta anos depois, a Carta já passou por 105 emendas. Seis delas na revisão de 1993, e outras 99 fruto de três décadas do processo legislativo. Na Câmara Federal, há mais 1.191 propostas de emendas constitucionais em tramitação. Além disso, presidenciáveis defendem uma nova Constituinte. O futuro da lei máxima do País é o último tema da série de reportagens do JC sobre os 30 anos da Carta de 1988.
“Há 30 anos, eu pensei que a gente estava fazendo uma Constituição para durar ao menos dois séculos sem remendos. Hoje, eu vejo ela emendada cem vezes. Mas tudo bem. Isso é porque o Brasil se desenvolveu, cresceu e se aproximou de países grandes. Por isso que a Constituição que nós fizemos não pode ficar como ela era. Mesmo chamada de Constituição Cidadã, ela careceu de cem reparos. Mas porque o Brasil melhorou muito nesses 30 anos. A gente ajudou o Brasil a melhorar”, avalia Gonzaga.
De temas centrais para o País, como a definição de um teto para os gastos públicos (emenda 95), a preocupações mais mundanas, como o custeio da iluminação pública de Brasília (emenda 39), a Carta Magna passou por mais do que alguns reparos. O texto está 44% maior, segundo um levantamento dos cientistas políticos Claudio Couto, da FGV, e Rogério Arantes, da USP.
Quatro em cada cinco emendas alteravam incisos da Constituição que tratam de políticas públicas, aponta o estudo. “A Constituição é muito emendada porque ela contém muita política pública, que é um produto perecível. Um governo de esquerda faz de um jeito, e um de direita faz de outro. Hoje, ela funciona; amanhã, não necessariamente”, explica Couto.
Originalmente, cerca de 70% do texto constitucional eram dedicados a direitos individuais e políticos ou a normas que definem o funcionamento do Estado brasileiro. “A chance de algo que é política pública ser emendado é de três para um. Os governos todos foram emendando a Constituição de lá para cá. E para isso tiveram que construir maiorias superiores a três quintos dos votos no Congresso, que é o quórum constitucional. Claro que isso aumenta os custos do presidencialismo de coalizão”, lembra o cientista político.
Nova Constituição?
Mas nem todas as propostas são para mudanças pontuais. Em abril deste ano, os juristas Modesto Carvalhosa, Flávio Bierrenbach e José Carlos Dias escreveram um manifesto defendendo uma nova Constituição que acabe com o foro privilegiado e elimine todos os cargos de confiança na administração pública.
As duas principais campanhas presidenciais também já propuseram uma nova Carta Magna. Vice de Jair Bolsonaro (PSL), o general da reserva Hamilton Mourão (PRTB) defendeu a elaboração de uma nova Constituição sem constituintes e aprovada por plebiscito. O plano de governo de Fernando Haddad (PT) também defende uma nova Constituinte, cujo modelo seria debatido “logo após a posse”.
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Diferentemente de 1988, em que o País passava por uma reconciliação e por um amplo espírito cívico após mais de duas décadas de arbítrio, o Brasil passa hoje por um momento de dramática polarização social e tem um Congresso acossado pela corrupção. Só a delação da Odebrecht levou o Ministério Público Federal a abrir investigações contra 24 senadores e 39 deputados federais em abril de 2017.
“É preciso repensar as reformas constitucionais. Agora, essas reformas não podem ser no sentido de reforçar um poder autoritário parecido com o que já tivemos”, alerta o sociólogo Aécio Gomes de Matos. “Todo projeto exige ajustes sistemáticos. A evolução da sociedade precisa sempre de ajuste nas Constituições. Há a necessidade de reformas. Mas, nesse momento, não temos um Parlamento em condições de fazê-las”, admite, porém.
O cientista político David Fleisher, professor da Universidade de Brasília (UnB), lista uma série de ajustes que são necessários nos próximos anos. “Toda a área de reforma tributária, que deveria ser alterada. A reforma da Previdência também vai alterar a Constituição. Isso é superurgente porque o déficit da Previdência cresce extraordinariamente e vai tomar o orçamento federal. Há gente que acha que a questão do aborto, sobre a qual o STF está deliberando, deveria ser discutida pelo Congresso. Mas o Congresso se recusa a deliberar sobre esse assunto”, projeta.
Crítico dos lobbys que atuaram na Constituinte e da quantidade de obrigações inseridas no texto sem a definição da origem dos recursos, o historiador Antônio Barbosa, professor da UnB, diz não acreditar que o Brasil precisa de uma nova Carta Magna. “Isso só pode acontecer quando há uma ruptura. Ou porque há um golpe, uma revolução, ou porque acaba uma ditadura e começa uma democracia. Nós estamos vivendo uma normalidade democrática. Eu gostaria, como cidadão, que a nossa Constituição fosse reduzida em vários aspectos. Que ela fosse muito mais enxuta. Mas daí a fazer uma nova Constituição, eu não concordo. Nós já tivemos Constituições demais no Brasil. E as democracias mais sólidas só têm uma Constituição”, defende.