SAÚDE MENTAL

Um zoom nos labirintos da alma

Além de aguçar a curiosidade do público sobre transtornos mentais, cinema é utilizado como instrumento de investigação por especialistas

Cinthya Leite
Cadastrado por
Cinthya Leite
Publicado em 15/09/2012 às 14:07
Igo Bione / JC Imagem
Além de aguçar a curiosidade do público sobre transtornos mentais, cinema é utilizado como instrumento de investigação por especialistas - FOTO: Igo Bione / JC Imagem
Leitura:

O jornalista Alexandre Figueirôa e o psiquiatra Francisco Lotufo Neto não se conhecem; nunca trocaram sequer uma palavra. O primeiro possui uma bagagem imensa de crítico cinematográfico, enquanto o médico é conhecido por ser expert em psicopatologia e cultura. Ao abraçarem com louvor a área que dominam, eles se encontram nesta reportagem especial sobre a saúde mental e o cinema. Ambos não medem palavras ao recordarem o clássico O gabinete do Dr. Caligari (1919), dirigido por Robert Wiene e que, nos primórdios do cinema, já fazia alusão à psiquiatria.

"O filme, da fase muda do cinema, traz a história de um sonâmbulo, sob o efeito de hipnose, que comete vários crimes. Ao final, ficamos sabendo que o enredo é a visão de um louco internado num hospício", diz o jornalista. Sob o prisma psicopatológico, Lotufo comenta: "O filme inicia uma longa tradição do cinema de representar o psiquiatra e o portador de transtorno mental de formas estereotipadas".

O psiquiatra faz esse relato no livro Cinema e loucura: conhecendo os transtornos mentais através dos filmes (Artmed Editora, 288 páginas, R$ 89). A publicação, diga-se de passagem, foi o pontapé inicial para a reportagem. Escrita pelo doutor em neurociências e comportamento Jesus Landeira-Fernandez e também pelo doutor em psiquiatria e saúde mental Elie Cheniaux, a obra mescla ciência, harmonia e criatividade para percorrer o mundo mental de personagens de 184 filmes do cinema nacional e estrangeiro.

Ao nos debruçarmos sobre o livro, uma pergunta há de se fazer: os filmes ajudam a compreender melhor os distúrbios mentais? "Como qualquer obra artística, eles devem divertir e provocar emoções na plateia. E podem ser úteis para promover uma maior compreensão acerca dos transtornos se discutidos com um profissional da área, capaz de apontar as imperfeições da obra na caracterização dos quadros clínicos psiquiátricos", afirma Elie, em entrevista para a reportagem.

A dinâmica do cinema alimenta tanto a curiosidade quanto às formas de adoecimento mental que o tema começa a ser trabalhado em sala de aula. Em Maceió, o psiquiatra e professor Flávio Soares de Araújo está à frente do curso de extensão cinema & psiquiatria, ligado à Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas (Uncisal). As aulas são voltadas a estudantes e profissionais de diversos segmentos.

O último debate de agosto tratou da expressão artística e do caráter científico por trás dos transtornos do humor. A discussão foi comandada com muita segurança pela dupla de monitores Adriano Barboza, 22 anos, e Maria Carolina Marques, 24 - estudantes de psicologia e de medicina, respectivamente. Cerca de 40 alunos acompanharam a aula, que trouxe à tona o longa As horas (2002), que remete ao transtorno depressivo maior, popularmente conhecido como depressão.

Após a exibição de As horas, os monitores convidaram a turma para a segunda parte da aula, que faz reflexões sobre a abordagem artística do distúrbio. Em seguida, Adriano e Carolina traçaram o perfil das três personagens do filme com depressão - entre elas, a escritora Virgínia Woolf (o único caso não fictício). Ela mora na Inglaterra, na primeira metade do século 20, e faz tratamento porque havia tentado o suicídio duas vezes.

Outra personagem do longa é Laura Brown, que vive em Los Angeles (EUA), em 1951. Grávida do segundo filho, a dona de casa aparece sempre prostrada, sem vontade de deixar a cama e com semblante de desespero. O trio se completa com Richard, que sofre de aids e cuja depressão poderia ser secundária à infecção pelo HIV.

Embora Adriano e Maria Carolina mostrem detalhadamente os sintomas apresentados pelos personagens do filme que podem ser bastante comuns a quem convive com a depressão, o professor faz questão de ressaltar: "As obras cinematográficas nunca vão retratar por completo a realidade por causa da veia poética que elas possuem".

Ao criarem um elo com o real, os monitores fazem o recorte de Laura na cama para relacionar o desânimo e a falta de energia, que formam uma condição típica do transtorno depressivo maior. "Por outro lado, As horas traça a melancolia como algo poético. E não funciona assim em quem tem depressão. É um quadro que precisa ser tratado", frisa Flávio de Araújo.


* Confira o debate sobre outros filmes que ilustram sinais, sintomas e síndromes psiquiátricas na edição deste domingo (16/9) da revista Arrecifes. E amanhã, veja aqui no JC Online depoimentos extras dos especialistas que participaram desta matéria.

Últimas notícias