Em agosto de 2008, quando morreu, Mestre Salustiano (1945-2008) virou mito eternizado em expressões e lembranças dos seus herdeiros, nas cores, nos sons e nos movimentos dos 15 filhos brincantes que fizeram – e fazem – da Cidade Tabajara, em Olinda, o terreiro e palco da continuação de uma perene brincadeira popular. Se estivesse vivo, o mestre de maracatu rural e cavalo-marinho, rabequeiro e um dos mais conhecidos artistas pernambucanos completaria 70 anos na próxima quinta-feira. A data, como é praxe no reduto dos Salu, vai ser comemorada com festa e alegria, na reunião de artistas, fãs e familiares do mestre – todos eles donos de um legado que é para sempre.
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O “Condomínio Salustiano”, na periferia olindense, como brinca Pedrinho, filho bailarino de Salu, é um reduto de sonhos e memórias da família brincante. No terreno de chão batido, cercado de mangueiras e bananeiras, cinco filhos construíram suas casas. No centro, há 13 anos, Salu ergueu mais uma casa: a da Rabeca – espaço de shows e apresentações de grupos de cultura popular, palco de sambadas e encontros de cavalo-marinho e berço da resistências dos caboclos de lança pernambucanos.
“Quando ele quis criar a Casa da Rabeca, a gente foi contra. A gente achava que era muito trabalho para ele. E ele dizia ‘não se metam, vocês não sabem de nada’. Tudo que ele colocou o dedo, deu certo. Meu pai é uma grande árvore, em que sento debaixo e alimento meus sonhos. É uma fonte que nunca seca”, diz Pedrinho, aquele que aprendeu, olhando, os passos das figuras do cavalo-marinho e terminou por virar um dos bailarinos do Grupo Arraial, acompanhando o escritor e dramaturgo Ariano Suassuna nas aulas-espetáculos sobre a cultura brasileira.
Cada um no seu ofício, a gente faz uma zoada boa
Pedrinho Salustiano
Num final de tarde de quarta-feira, Pedrinho foi um dos quatro filhos de Salu que nos receberam na Casa da Rabeca para falar sobre o legado do seu pai. Junto a ele, Dinda, rabequeiro; Cristiano, bordador; e Célia Beatriz, que também toca rabeca. “Cada um no seu ofício, a gente faz uma zoada boa”, resume Pedrinho, logo surpreendido pelo filho, João Pedro, de 3 anos, que pinta sozinho o rosto de carvão e se transforma em um Mateus, personagem do cavalo-marinho, prova de que está brinquedo está no sangue.
A história dos Salu começou ainda na década de 1960, quando o patriarca saiu da Zona da Mata para morar em Olinda, trazendo consigo a tradição e as referências do maracatu rural e do cavalo-marinho que fizeram parte da sua infância, repassadas pelo seu pai, João Salustiano. “Salu vendia picolé em escolas, trabalhou em casa de família, em limpeza de esgoto. Salu chegou a passar fome; e seus filhos, necessidade”, lembra o bailarino. “Mas a cultura popular sempre foi seu grande amor.”
Com a morte do mestre, aos 62 anos, ficou para os filhos a tarefa de levar adiante a história de dedicação e entrega à cultura, a grande fonte de renda da prole. Como o ditado afirma, quem sai aos seus não degenera, na Cidade Tabajara todo mundo seguiu a vida de artista. Gente que no Natal e no Carnaval se veste de mantos e adornos brilhosos, de alegria e deslumbre, definida por Ariano Suassuna, um dos mais fiéis frequentadores daquele local, de “uma grande demonstração de generosidade e grandeza”.
“Lembro ainda aos que chamam de ‘joias falsas’ e ‘pedras falsas’ os vidrilhos e lantejoulas com que o povo adorna seus adereços, que, do ponto de vista dos poetas, essas joias e pedras falsas são mais valiosas do que as ‘verdadeiras’ usadas pelos ricos, porque naquelas existe uma quantidade maior de sonho humano”, defendia Ariano.
ATUAÇÃO POLÍTICA
Tamanha era relação do mestre Salustiano com as manifestações populares que, além de brincante, ele se transformou também em agente político. “Essa presença dele no meio político começou com apoio de Leda Alves (atriz e atual secretária de Cultura do Recife), que indicou Salu para fazer um comercial em que precisavam de um brincante. Depois, no governo de Miguel Arraes, Leda Alves assumiu a presidência da Fundarpe e levou Salu para sua assessoria. Foi nessa época que ele criou a Associação de Maracatu de Baque Solto de Pernambuco. No início, eram apenas 12 grupos; hoje, são mais de 100. Além de levantar a bandeira da cultura popular, ele uniu os grupos”, lembra o filho. “Nas viagens dele para fora do Estado e do Brasil, vinham as oportunidades. E Salu soube aproveitar cada uma delas.”
Salustiano virou nome famoso e professor de artistas nacionais, que procuravam a Ilumiara Zumbi como escola de arte e de mergulho na identidade brasileira. Dinda, o filho rabequeiro de Salu, o caçula dos homens, “o mais completo de todos”, segundo Pedrinho (já que, como o pai, dança, toca e borda golas de caboclo de lança), lembra que, pela Casa da Rabeca, já passaram alunos como “(o músico) Siba e (o multiartista) Antonio Nóbrega”. “Gente que veio beber da fonte” da família ilustre. Sua contribuição à história pernambucano levou Salustiano a receber o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco, em 2005.
Hoje, toda a memória e acervo histórico dos Salu estão guardados, à espera de ganhar um espaço estruturalmente digno para ser exposto a todos. “A ideia é criar um museu. O que nos resta é arrumar alguém para patrocinar e um arquiteto para fazer o projeto”, conta Pedrinho Salustiano. O legado do mestre também deve virar filme, com direção do cineasta pernambucano Tiago Leitão. O documentário Filhos do Mestre vem sendo filmado desde 2013, e reúne depoimentos dos descendentes do músico e brincante.
Orçado em R$ 650 mil, o longa-metragem, no entanto, está agora à espera de verba para a finalização. “A gente conseguiu uma parte do dinheiro através da Lei Rouanet. Mas agora falta grana para finalizar”, explica Leitão. “Mas eu quero, de todo jeito, terminar o filme em 2016. Com R$ 150 mil conseguimos isso”, acrescenta. “É uma pena que o personagem que o Estado já utilizou tanto para sua imagem não tenha apoio.”