Que possamos ser protegidos daqueles que nos defendem.
Porque o ato de defender geralmente carrega interpretações diferentes: uma íntima e outra coletiva.
Quando você defende o suco de caju, está fazendo isso porque gosta dele, muito mais do que pelas propriedades nutricionais. Ser nutritivo ou não, pode até ser um dos argumentos coletivos, mas vai ficar em segundo plano nos seus motivos íntimos. Você gosta porque gosta.
É preciso pontuar, porém, que se deixar levar pelo íntimo para defender que somente o caju deveria existir, é preocupante.
E, o principal, democracia não é suco de caju. Se eu digo que é preciso defender a democracia, por exemplo, é um chamado coletivo que precisa ser desatado de minhas preferências íntimas.
A defesa da democracia vem sendo exercida com interpretações tão íntimas e variadas no Brasil quanto o nível de conhecimento sobre seu significado.
Há quem acredite que é ser “livre para fazer o que quiser e dizer o que bem ou mal entender”, sem ser punido por isso.
Mas há também quem entenda que qualquer coisa contra o seu próprio entendimento do mundo é um “atentado à democracia”. Algo como “ou você pensa igual a mim, ou é antidemocrático”.
Ambas as visões de mundo, uma identificada, hoje, com a direita brasileira e a outra identificada com a esquerda, estão muito longe da democracia, embora os dois pensamentos usem a defesa do fazer democrático como justificativa.
Não passam de argumentos íntimos (e equivocados) para uma defesa coletiva.
Fazer o que quiser, ignorando a ordem, as leis e as consequências, como defendem alguns bolsonaristas radicais, é só anarquia.
Já a perseguição ao pensamento diverso do seu, prática da esquerda no Brasil há muitos anos, é totalitarismo.
Não há nada de democrático nisso.
Esta semana repercutiu muito um texto escrito pelos integrantes do Centro Acadêmico XI de Agosto, da USP. Eles resolveram escrever uma carta para dizer que “em nome dos valores democráticos”, Janaína Paschoal não era “bem vinda” como professora na Universidade.
O motivo: ter defendido coisas com as quais os integrantes do diretório não concordam. “Consideramos que Janaína Paschoal tem dado uma contribuição indecente para o país. Foi a responsável por fundamentar juridicamente o processo de impeachment contra a ex-presidente Dilma Rousseff e, em 2018, apoiou e surfou a onda bolsonarista para alcançar um mandato na Assembleia Legislativa de São Paulo”.
A ex-deputada estadual, que não se reelegeu exatamente porque divergiu dos bolsonaristas quando eles se radicalizaram, algo democrático, é professora concursada da instituição e avisou que voltará ao trabalho no dia 15 de março.
A carta dos membros do diretório estudantil é uma peça ampla do repertório equivocado que a “defesa da democracia” à esquerda oferece, mas chega a ser meio infantil e ingênua.
Ela termina assim: “Hoje a Faculdade de Direito da USP é dos alunos negros e pobres. Hoje a universidade pertence aos defensores da democracia, não aos seus detratores. É exatamente por isso que você não cabe mais aqui. As nossas salas de aula se tornaram grandes demais para você”.
Por mais que os “negros e pobres” mereçam ocupar estes e outros espaços, com toda justiça, delimitar a propriedade de uma universidade pública a qualquer ambiente que não seja plural o suficiente para receber todas as pessoas, com seus repertórios diversos, formando pontos e contrapontos, teses e antiteses (mais hegeliano impossível) que são a base do nosso desenvolvimento humano, é autoritarismo.
As salas de aula podem ser “tão grandes” ao ponto de limitarem seu espaço num esforço para evitar o contraditório?
Desde que se respeitem as leis e o regimento da instituição (sem o que estaríamos diante de uma anarquia), universidades deveriam ser lugares de encontro e discussão ampla, não de segregação.
Democrático é não gostar de suco de caju, mas respeitar os que acreditam nessa fruta como “obra-prima divina, apreciada originalmente pelo criador, embaixo de um cajueiro frondoso, no sétimo dia de idade deste mundo” (o colunista pensa assim).
A vida dentro das bolhas sociais tem dado legitimidade aos jovens, e até a alguns velhos pouco amadurecidos, para acreditar que somente o eco de seus próprios pensamentos traduz a razão do mundo.
A razão do mundo e sua evolução é o encontro de contrários. Isso é óbvio, mas ainda precisa ser ensinado na escola. E até na USP.