PL do aborto: Os dois lados vão fingir que venceram e tudo continua igual
Para a esquerda e a direita, é mais efetivo brigar sem precisar solucionar nada. Que é o que vai acontecer. Pior para as mulheres e meninas.
O deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), autor do Projeto de Lei que prevê prisão para meninas e mulheres que se submeterem a um aborto após 22 semanas de gravidez, sentiu a pressão e começou a terceirizar responsabilidades. Numa entrevista, declarou que “quem vai resolver isso é o juiz”.
Eles resolvem
Disse o deputado Sóstenes: "Essa pena quem vai decidir é o juiz a seu critério. Já está efetuado no parágrafo único, que o juiz inclusive pode não aplicar a pena se ele entender assim. Então o projeto é muito light".
É curioso como alguns parlamentares, principalmente os bolsonaristas, reclamam tanto do protagonismo do Judiciário, mas quando se encontram pressionados, jogam tudo pros juízes e saem correndo.
Hipocrisia
O protagonismo exacerbado do Poder Judiciário tem vários fatores que merecem discussão, mas um deles, certamente, é o espírito covarde de parlamentares que abraçam o grotesco para agradar a própria bolha e depois não sabem lidar com as consequências.
Nesse caso do PL 1904/24, há tantas camadas de hipocrisia que não caberiam numa folha só. A maior delas é os parlamentares declararem que estão propondo algo tão absurdo quanto mandar prender meninas e mulheres vítimas de violência sexual caso elas não queiram dar à luz um filho de seus estupradores com a justificativa de que são “pró-vida”.
Quais vidas?
E quando não são bandidos? Quando são crianças, vítimas de abuso, que engravidam e caso não abortem podem morrer, a vida dessas meninas importa?
Todos vão responder que sim, mas quando, em 2020, uma menina de 10 anos, do Espírito Santo, grávida depois de ser estuprada seguidamente por um tio, precisou vir ao Recife para fazer um aborto, deputados pernambucanos foram para a frente do hospital pressionar os médicos e a família da menina para que ela não fizesse.
A criança grávida corria risco de morte, estava com 22 semanas e quatro dias, mas a vida dela não era mais importante do que o discurso dos parlamentares na época, um ano de eleições municipais, lembremos.
Exemplo
Esse caso da menina do ES, aliás, pode ser usado como exemplo para quem acredita que 22 semanas, o que dá cerca de cinco meses de gestação, é mais que suficiente para que o aborto legal seja realizado, como muitos estão defendendo e está na lei. Não é. E não tem nada a ver com o que os médicos acham, tem a ver com a burocracia e com a realidade da estrutura do estado brasileiro.
Realidade
É preciso não conhecer a realidade brasileira para achar que 22 semanas é “mais que suficiente”. Essa menina, com 10 anos de idade, precisou fazer o aborto no Recife depois de passar por juízes no ES e em PE autorizando o procedimento, tentou fazer o aborto em seu estado natal e não conseguiu, médicos se recusaram a fazer a cirurgia, grupos de extrema-direita divulgaram o nome da menina nas redes sociais e ela começou a ser perseguida. Tudo isso foi atrasando a solução.
Vergonha e desinformação
E antes disso, até chegar a um juiz, imagine uma menina na zona rural, abusada por um familiar, sem entender o que estava acontecendo com ela, que só procurou ajuda quando começou a sentir dores abdominais e foi a um posto de saúde, no dia em que havia algum médico de plantão.
No Brasil é preciso vencer a ignorância, o medo, a pressão familiar, a falta de educação sexual, a vergonha, a falta de infraestrutura na Saúde, o extremismo religioso, tudo isso aos 10 anos de idade, depois de ter sido estuprada por um tio, para ainda ter que lidar com deputados na porta do hospital.
Numa situação dessas, basta dizer um número, como 22 semanas, e está tudo resolvido?
Discussão
O foco que está sendo dado pelos responsáveis é eleitoreiro e midiático. Se os nobres deputados quisessem realmente tratar do assunto com seriedade, estariam regulamentando o limite legal para que o aborto acontecesse sem colocar em risco a vida de ninguém.
Sim, precisa haver um limite seguro pensando na menina ou na mulher grávida, mas isso deve ser discutido sob o ponto de vista científico, com debate amplo e não com aprovação simbólica em decisão por aclamação, como o presidente da Câmara, irresponsavelmente permitiu. Muito menos com criminalização da menina ou da mulher vítima de estupro.
Para resolver
Ao invés de tentar criminalizar o aborto, como fazem os deputados da direita, ou se revoltar dizendo que isso é beneficiar os estupradores, como fazem os deputados da esquerda, os parlamentares deveriam estar trabalhando numa lei que obrigasse o Estado a ser mais célere com os procedimentos que permitem a interrupção da gravidez de forma legal, para que não se precise chegar em 22 semanas.
Deveriam estar cobrando atendimento médico de qualidade e estrutura adequada até em comunidades rurais.
Deveriam estar trabalhando em outro texto que aumentasse a pena para estupradores de forma severa.
Deveriam estar preocupados em proteger as crianças, adolescentes e mulheres, não em puni-las. Mas deveriam apontar meios para isso.
Deveriam colocar no orçamento um maior volume de recursos para a educação sexual, para que essas meninas sejam realmente protegidas e saibam se proteger.
Mas ninguém está fazendo isso.
Carrapatos
Deveriam estar aproveitando o momento para cobrar do estado brasileiro que essas meninas e mulheres sejam protegidas, tenham estrutura, mais verbas para essa rede de apoio, para a Saúde feminina.
E não o estão fazendo, no caso dos aliados do governo, talvez porque seriam cobrados também. E não estão fazendo, no caso dos oposicionistas, porque perderiam votos entre os evangélicos se defendessem algo assim.
O problema é que nenhuma dessas soluções postas acima, e que resolveriam o problema, garantiriam votos nas bolhas eleitorais das quais esses senhores e senhoras de esquerda e de direita sobrevivem como se fossem carrapatos. É mais efetivo brigar sem precisar solucionar nada. Que é o que vai acontecer.
O projeto morre, cada lado arranja uma forma de comemorar dizendo que venceu, enquanto as meninas e mulheres continuarão na mesma situação em que estavam antes, desprotegidas e abandonadas.