"Chegou a hora de pagarmos a conta"

Em entrevista para o JC, o físico Marcelo Gleiser fala sobre seu novo livro, "O despertar do universo consciente"

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Fábio Lucas

Publicado em 22/03/2024 às 18:44
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Para não perdermos o único lar de que dispomos, a humanidade precisa enfrentar desafios gigantescos, que impõem a necessidade de “mudanças de visão de mundo e de comportamentos que possam redirecionar nosso futuro coletivo”. Um dos mais renomados cientistas em atuação, o brasileiro Marcelo Gleiser, vencedor do Prêmio Templeton, acaba de lançar pela editora Record o livro “O despertar do universo consciente”. Onde defende o biocentrismo como ética para o ser humano cumprir seu papel cósmico.
Nesta entrevista ao JC, o professor titular de filosofia natural e de física e astronomia na Dartmouth College, nos Estados Unidos, afirma que o conceito de progresso infinito é a causa da devastação ecológica que vemos em nossa época, e tal progresso “é claramente insustentável num planeta finito”. De acordo com Marcelo Gleiser, que lança um manifesto para o futuro da humanidade, o ser humano deve assumir a relação com o planeta, e transmitir às novas gerações essa ligação. “Somos parte da história do universo, somos a voz com que o universo conta a sua própria história”.

 

Eli Burakian
Gleiser é professor do Dartmouth College, nos Estados Unidos - Eli Burakian

 

JC - Como definir a espiritualidade do conhecimento, sem o dogmatismo e a resignação ao mistério da fé, associados às religiões?
Marcelo Gleiser - A fé em Deus (e qual Deus seria esse? Existem muitos deuses no planeta, não só o que lemos na bíblia) é algo que não precisa de demonstração científica ou de provas experimentais. É a fé numa entidade que, em geral, existe além das leis da natureza. Portanto, a ciência nem prova nem desprova a existência de divindades sobrenaturais. Ela não teria como fazer isso, dado que atua na natureza. Portanto, quando falo em espiritualidade na nossa relação com a natureza, me refiro a uma espiritualidade completamente divorciada da religião organizada, ou duma crença no sobrenatural. Seria uma espiritualidade secular, inspirada na nossa conexão com a natureza, com seus ritmos, sua beleza, nossa interdependência com todas as formas de vida, na nossa relação profunda com a história do universo como um todo, como explico no livro.

JC – Qual a importância da reconexão da consciência humana com a biosfera que a permitiu surgir, para o futuro da humanidade?
Marcelo Gleiser - O biocentrismo prega que qualquer mundo que comporta a vida, a Terra ou, quem sabe, outros pela galáxia, são mundos sagrados. Mas o “sagrado” aqui não nos remete a algo criado por algum deus, ou que tenha uma relação com o sobrenatural. Pelo contrário, o sagrado aqui reside justamente no natural, na beleza e majestade da natureza, dos seres vivos, da interrelação e co-dependência entre tudo o que está vivo, como disse acima. Um planeta que tem uma biosfera com a incrível diversidade como a nossa merece ser celebrado e venerado. Esse é o sentido de sagrado. É esse cuidado, esse carinho com a natureza que precisamos para salvar o futuro da civilização. A reconexão da consciência humana com a biosfera começa no coração.

JC – Há tempo para a disseminação do biocentrismo nos costumes, e nos governos?
Marcelo Gleiser - Se temos ou não tempo para essa reconexão, esse “religar” (como vejo a palavra religião) vai depender das pessoas, de como elas reagem às ideias que proponho no livro. A meu ver, é profundamente ingênuo achar que podemos continuar a viver como estamos e que tudo vai dar certo, que as soluções tecnológicas vão nos salvar. Esse é o caminho para o desastre, com certeza. Precisamos agir, e essa ação começa com cada pessoa. E de lá passa para comunidades e lideranças diversas.

JC – Qual sua opinião a respeito de visões pós-humanas, em que a consciência, de certa maneira, transcenderia a matéria, e assim, estaria desconectada da natureza e do berço planetário da vida?
Marcelo Gleiser - Acho culturalmente desastrosa e cientificamente fantasiosa. Legal para filmes e livros de ficção científica, mas não como proposta para o nosso futuro coletivo. Não temos a menor ideia do que isso significa, digitalizar uma pessoa por inteiro e transformá-la em informação que pode ser viabilizada num super computador. É o que chamo de "Ressureição dos Nerds", certo? A libertação do corpo, a existência apenas do “espírito”, da nossa essência informacional. É transformar a ciência em deus, finalmente indo além da morte. Um sonho sem dúvida, que atrapalha muito mais do que ajuda o nosso futuro coletivo. Temos desafios gigantescos pela frente e não precisamos sair do nosso corpo. Ao contrário, precisamos entrar mais nele; esse é o problema da civilização moderna, o esquecimento da nossa ligação com o corpo e com o mundo natural.

JC – A ideia de progresso acoplada à prática do consumo pode ter gerado um modo de vida em que o conhecimento também é vítima do consumismo? Neste caso, o conceito de progresso deve ser substituído, ou somente ressignificado?
Marcelo Gleiser - O conceito de progresso infinito, que é a causa da devastação ecológica que caracteriza a nossa era, é claramente insustentável num planeta finito. Se não entendermos isso e mudarmos nossos hábitos e estruturas econômicas para economias e hábitos voltadas à sustentabilidade, reaproveitamento de materiais, e uso extenso de combustíveis renováveis, não teremos saída, infelizmente.

JC – O senhor descartaria tudo no conceito de progresso, ou há algo de positivo a ser mantido na compreensão de uma linha do tempo cumulativa para o conhecimento e a tecnologia que vem dele?
Marcelo Gleiser - Obviamente, temos também que celebrar a criatividade humana, a ciência e tecnologia que nos levou ao mundo moderno. Mas é inocente ver apenas esse lado da moeda, dado que esse crescimento é sustentado por recursos naturais e interesses de capital incompatíveis com a sustentabilidade. Não é possível crescer impunemente sem pagar um preço alto. E chegou a hora de pagarmos a conta.

JC – Os gastos crescentes com armamentos, nos últimos anos, apontam para uma escalada na disposição para a violência que não deixa de ser coerente com o modo predatório que extinguiu várias espécies e ameaça muitas outras, desde o surgimento do Homo sapiens. Podemos dizer que, a esta altura, o que enfrentamos é o nosso próprio impulso de autodestruição? E neste caso, não seria frustrante imaginar esse fim precoce da vida consciente, aparentemente um experimento isolado e solitário no raio do universo conhecido pela consciência?
Marcelo Gleiser - Sem dúvida, e essa é a lição central do meu livro. Precisamos nos redefinir enquanto espécie, recontar a história de quem somos, ou redirecioná-la. Caso contrário, todos os cenários distópicos de catástrofes futuras vão se tornar realidade. Não ver isso é enfiar a cabeça na areia. A questão é quais compromissos, escolhas e pequenos sacrifícios as pessoas estão dispostas a fazer para preservar o planeta. Toda ação individual conta. Isso precisamos aprender, e tomar decisões coerentes. Por isso o subtítulo do meu livro é “Um Manifesto para o Futuro da Humanidade”. Um manifesto propõe ações que promovem mudanças.

JC – Como a história do universo e da vida pode ser melhor aproveitada nas escolas? O que está faltando ser dito, de crucial para o ponto em que chegamos? A educação das novas gerações pode ser capaz de transformar o processo da crise ambiental, diante de uma realidade tão desafiante?
Marcelo Gleiser - Essencialmente, essa história, um dos grandes triunfos da humanidade, não é contada de forma alguma, em qualquer série. Portanto, não é surpreendente que poucos saibam como somos parte da história do universo, como somos a voz com que o universo conta a sua própria história. Essa voz é ligada à uma ética moral, a de preservar a vida e o planeta que nos permite contar a nossa história e a história do universo. E é uma história tão linda, que abraça todas as outras histórias… Aprendê-la transforma vidas, especialmente as dos jovens, que vão viver nesse planeta que fizemos doente com nossa ganância material.

JC – Elizabeth Kolbert chama a mensagem contida no seu livro de “alarmante, mas afinal, otimista”. Entre o alarme e o otimismo, o Sr. acredita que podemos estar próximos de um ponto de não retorno, num caminho sem volta para um reboot da vida natural na Terra? Se tudo der certo, como imagina o futuro da humanidade salva de si mesma?
Marcelo Gleiser - Se sou otimista não quero acreditar num futuro catastrófico. Minha proposta ao escrever esse livro é justamente oferecer ferramentas e ideias que possam inspirar mudanças de visão de mundo e de comportamentos que possam redirecionar nosso futuro coletivo. O alarme já está tocando há muito tempo, mas não acordou muita gente. Eu procuro um outro tipo de despertar, inspirado numa sensibilização com a natureza e com nosso poder de mudar e criar novas oportunidades futuras. Não vejo outra alternativa.

 

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Publicação é da Record - Divulgação

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