Atropelamento aconteceu quando os ciclistas subiam a Ponte João Paulo II, que compõe o complexo de viadutos Joana Bezerra. O motorista estava numa Range Rover Evoque branca. Fotos: Bobby Fabisak/JC Imagem
Deveria existir uma ciclovia no caminho do ciclista César Filipe Gomes da Silva, 30 anos, atropelado e morto depois de ser arremessado a quase 50 metros por um motorista ainda não identificado, na madrugada de sábado (9/3), no Viaduto Joana Bezerra, na Ilha do Leite. O percurso feito diariamente por César, Paulo Victor Moura, 33, e Jonatan da Silva Gadelha, 17, colegas de trabalho como auxiliares de cozinha e de criação em Chão de Estrelas, no bairro de Campina do Barreto, periferia da Zona Norte do Recife, deveria ter, em quase 80% dele, algum tipo de estrutura ciclável. Ou seja, uma ciclovia ou ciclofaixa para proteger quem pedala do tráfego motorizado. No local exato do acidente, a Ponte João Paulo II – que ao lado do Viaduto Capitão Temudo compõe o chamado Complexo de Viadutos Joana Bezerra –, era para ter sido implantada, desde 2014, um ciclovia pela Prefeitura do Recife.
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Essa mesma estrutura deveria ter continuidade pela Avenida Agamenon Magalhães, até a altura da Rua do Paissandu, também na Ilha do Leite. A partir daí, o equipamento seguiria por toda a Agamenon, alterando apenas a responsabilidade pela implantação, que sairia das mãos da gestão municipal para as do governo de Pernambuco. E seria por essa ciclovia metropolitana, que atravessaria o Recife e chegaria ao município de Olinda, que os três amigos pedalariam até a altura do bairro de Santo Amaro. Os sobreviventes do atropelamento e a família do ciclista morto nunca ouviram falar da possibilidade de ter uma ciclovia no trecho. Mas ela é real e oficial. É prevista no Plano Diretor Cicloviário (PDC) da Região Metropolitana do Recife, estudo realizado com recursos públicos (quase R$ 1 milhão) que recomenda a implantação de 591 quilômetros de estrutura cicloviária nas 15 cidades da RMR.
“Nunca soube que ali deveria ter uma ciclovia. Seria ótimo se ela tivesse sido construída. Com certeza íamos pedalar com menos medo e César poderia estar vivo, aqui ao nosso lado. Sempre fizemos esse caminho pelo viaduto, mas sempre com muita atenção e com muito medo”, comentou o ciclista Paulo Victor Moura. A demora do poder público em implantar o PDC já resultou numa ação judicial. No início de fevereiro, a Associação Metropolitana de Ciclistas do Recife (Ameciclo) deu entrada numa ação civil pública para forçar, usando o poder da lei, as 15 prefeituras que integram a RMR a executarem integralmente o PDC. Até agora não houve uma decisão – mesmo que liminar (provisória) – da Justiça, mas os ciclistas já garantiram que a morte de Filipe César será incluída nos autos e cobrada do poder público. “Estamos contabilizando mortes em vias que deveriam ter algum tipo de proteção para quem usa a bicicleta como transporte. São cinco anos de conclusão do PDC, formulado pelos mesmos gestores que deveriam implantá-lo, e muito pouco foi feito. Por isso iremos adicionar todas essas mortes aos autos”, afirmou Denes Menezes, advogado da Ameciclo.
César Filipe foi criado pedalando. Em 2003, perdeu o irmão atropelado enquanto pedalava em Olinda. Mas mesmo assim seguiu usando a bicicleta.
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Nesses cinco anos de conclusão, o PDC teve uma execução quase vexatória: apenas 16% das ciclovias, ciclofaixas e ciclorrotas recomendadas foram implantadas, num total de 99,71 quilômetros. E o prazo é curto para recuperar o tempo perdido, já que as metas do PDC deveriam ser cumpridas até 2024. Explicando: ciclovia é o equipamento que mais protege o ciclista porque tem segregação física do tráefgo de veículos. Geralmente com blocos ou mini-blocos de concreto. A ciclofaixa é quando a segragação física é feita parcialmente, apenas com sinalização e tachões. E a ciclorrota é a que menos protege porque, embora exista sinalização horizontal e vertical, ciclistas e veículos dividem o mesmo espaço.
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Os três amigos voltavam do trabalho, numa lanchonete em Boa Viagem, na Zona Sul do Recife, entre 0h e 1h do último sábado, quando foram atropelados. Os três subiam a Ponte João Paulo II, próximo ao acostamento da faixa da esquerda, no sentido Boa Viagem-Olinda. Jonatan Gadelha garante que o veículo era uma caminhonete Range Rover Evoque branca. César Filipe foi arremessado a 50 metros de distância e morreu momentos depois do impacto. Jonatan foi ferido na mão direita, levando sete pontos. Paulo Victor nada sofreu.
Paulo Victor conta que tudo foi muito rápido e que o veículo surgiu em velocidade. Ele e César Filipe eram amigos desde criança
CÂMERAS E INVESTIGAÇÃO
O caso está sendo investigado pelo delegado de Delitos de Trânsito, Paulo Jean. Ontem mesmo o delegado já solicitou formalmente as imagens das câmeras da Autaquia de Trânsito e Transporte Urbano do Recife (CTTU) e da Secretaria de Defesa Social (SDS) para tentar identificar o veículo que provocou a colisão. “O inquérito policial já está instaurado e já identificamos as vítimas. Também expedimos ofícios solicitando imagens de câmeras e os dados da ocorrência registrados no local do atropelamento. Já estamos investigando”, afirmou o delegado.
OUTRA MORTE
A família de César Filipe pretende colaborar com as investigações. “Queremos ajudar no que for possível. Não queremos vingança ou nada do tipo, até porque César não voltará. Queremos que a justiça seja feita. Queremos que o motorista que matou meu irmão seja responsabilizado pelo que fez”, afirmou Márcio Rodrigo Gomes da Silva, um dos irmãos do ciclista morto. O luto da família de César, inclusive, é ainda maior porque um irmão dele também morreu atropelado enquanto pedalava em Olinda, em 2003. “Estamos revivendo esse luto tão sofrido. Minha mãe é quem mais sofre. Não acredita que esteja passando por tudo isso novamente. Ela pedia sempre para não pedalarmos, mas quem vive na periferia usa a bicicleta para tudo. É difícil não usar”, afirmou.
ENTREVISTA/JONATAN GADELHA
“FOI UMA CAMINHONETE RANGE ROVER EVOQUE BRANCA", garante ciclista
Jonatan Gadelha começou a pedalar ao lado de César Filipe há três meses, quando passou a trabalhar com o colega no mesmo emprego, uma lanchonete em Boa Viagem, na Zona Sul do Recife. Ele, inclusive, é uma importante testemunha do atropelamento porque foi quem viu o veículo que matou César Filipe. “Foi o motorista de uma caminhonete Range Rover Evoque branca, que sumiu com a mesma rapidez que atropelou César, sem prestar socorro”, lementa.
JC – Como tudo aconteceu? O que você lembra? J
onatan Gadelha – Lembro de tudo, do começo ao fim. A gente voltava do trabalho, em Boa Viagem, como de costume. Sempre largamos entre 0h e 0h30. Seguíamos para casa, em Chão de Estrelas, como sempre. Descemos o viaduto e, quando estávamos subindo a ponte, perto do Hospital Português, César avisou que vinha um carro. Victor estava na frente, eu e ele estávamos praticamente lado a lado. O carro passou e, logo em seguida, César acelerou um pouco para me ultrapassar na subida e ficar no meio. Aí o carro bateu nele. Foi arremessado 50 metros à frente de onde a gente estava. Caiu no chão e ficou agonizando, praticamente morto. O impacto foi muito forte. A bicicleta ficou dilacerada.
JC – O motorista não hesitou em nenhum momento, como se estivesse na dúvida se deveria parar para prestar socorro?
Jonatan – Não. Com a mesma rapidez que bateu em César, ele foi embora. Nem pensou em parar. JC – Você chegou a ver o veículo? Jonatan - Vi sim. Não vi a placa, porque foi tudo muito rápido. Mas era um carro branco. Uma caminhonete Range Rover Evoque branca. Um motoqueiro que passou no sentido contrário da via ainda quis ir atrás do veículo, mas ficou difícil porque ele estava do outro lado.
JC – Você teve ferimentos. Como aconteceu?
Jonatan – Ainda não sei o que me atingiu porque não cai da bicicleta. O veículo bateu apenas em César. Mas algo bateu na minha mão. Levei sete pontos. Acho que pode ter sido alguma coisa da bicicleta de César, no momento em que foi atingido. Não foi o carro porque ele estava ao meu lado.
JC – Vocês pedalavam do lado esquerdo da via, próximo à faixa de maior velocidade, quando o recomendado seria do lado direito. Isso pode ter contribuído para a colisão?
Jonatan – Não, de forma alguma. Estávamos bem no canto, próximo ao acostamento, na mão certa, no sentido da via. Apenas pedalando para voltar para casa. Não havia razão para esse motorista fazer o que fez. Por isso que eu acho que ele tirou foi onda com a gente. Por alguma razão, ele foi malicioso com a gente. Mesmo a ultrapassagem de César foi muito cuidadosa. Ele se afastou muito pouco do canto da via. Milímetros. O motorista é que deveria ter reduzido ao nos ver. Isso era o correto.
JC – E sobre a versão de que o motorista que atropelou César Felipe poderia estar fugindo de uma outra colisão, momentos antes?
Jonatan – De fato, houve uma outra colisão com um motoqueiro, que também teria morrido. Mas aconteceu depois do atropelamento de César. Trinta minutos depois. Não tem como ter sido o mesmo veículo.
JC – Você pedala com medo? Sabia que no local onde César morreu deveria existir uma ciclovia?
Jonatan - Não sabia disso. Meu amigo poderia estar vivo agora se houvesse uma estrutura para a gente pedalar. Sentimos muito medo, mas a bicicleta é uma boa opção. Ganhamos tempo com ela. De ônibus demora. Chegamos em casa entre 3h e 4h. Quando voltamos de bicicleta estamos em casa por volta de 1h. E como andamos juntos, é melhor, dá menos medo.
JC – O que você diria para esse motorista que atropelou César e sequer parou para prestar socorro?
Jonatan – Não sei o que diria, mas não tenho raiva dele. O que eu quero é que seja feita justiça para que isso não aconteça de novo com outras pessoas. Apenas César morreu, mas nós três poderíamos estar mortos agora. Vai ser muito difícil voltar a pedalar depois de tudo isso.
Irmão de César Filipe, Márcio Rodrigo Gomes da Silva diz que a família não quer vingança. Apenas que a justiça seja feita e o motorista identificado para responder pelo que fez Provocada pela reportagem, a Prefeitura do Recife se posicionou oficialmente por nota, enviada pela CTTU. Confira a íntegra: