Em Pernambuco, o Sistema de Transporte Público de Passageiros da Região Metropolitana (STPP/RMR) custa R$ 1,3 bilhão por ano, dos quais R$ 1,1 bilhão vem da tarifa. Foto: Bobby Fabisak/JC Imagem
O transporte coletivo do País precisa, urgentemente, de um fundo público que o financie e que seja pago por toda a sociedade, passageira ou não do sistema. Não dá mais para a conta ser apenas do passageiro. A discussão – travada há alguns anos no setor, mas até hoje sem um efeito prático – sempre volta à tona em inícios de ano, quando as passagens do transporte público tradicionalmente são majoradas. No caso do transporte da Região Metropolitana do Recife, basta olhar para a semana que passou, quando governo de Pernambuco e empresários de ônibus se estranharam publicamente após o setor defender um reajuste de 14,13%, o que aumentaria o Anel A – utilizado por 80% das 1,8 milhão de pessoas que diariamente andam de ônibus – em R$ 0,45, passando de R$ 3,45 para R$ 3,90. Ao ponto de o Estado decidir: não haverá aumento das passagens de ônibus em 2020.
É claro que a conotação política não pode nem vai ser desconsiderada nessa análise. Estamos em ano eleitoral e o PSB tem a missão de garantir a sucessão na gestão municipal do Recife. Ou seja, um aumento das passagens no momento atual, com uma crise econômica enforcando a população e sequenciais problemas no sistema de transporte por ônibus da RMR – basta lembrar a descaracterização e degradação do Sistema BRT –, teria um impacto negativo tremendo nas urnas. Por isso mesmo é preocupante. Se o governo de Pernambuco não conseguir cumprir o que está prometendo – de fazer o que deveria fazer desde sempre, moralizando e qualificando o transporte –, a conta, mais uma vez, será do passageiro. E, o que é pior: do passageiro mais pobre, mais necessitado. Por tudo isso e porque ano eleitoral não é todo ano, precisamos voltar a falar do financiamento público do transporte coletivo brasileiro.
Em Pernambuco, o Sistema de Transporte Público de Passageiros da Região Metropolitana (STPP/RMR) custa R$ 1,3 bilhão por ano, dos quais R$ 1,1 bilhão vem da tarifa. Ou seja, apenas 15% é subsidiado pelo Estado. 85% do custo é bancado pela tarifa, ou seja, sai do bolso do passageiro pagante. Em 2019, o governo colocou R$ 222 milhões em subsídios no STPP. Pelo menos são os dados oficiais. Para 2020, os números do governo apontam um subsídio ainda menor: R$ 207 milhões. No País, a situação é bem parecida. O estudo “Financiamento Extratarifário da Operação dos Serviços de Transporte Público Urbano no Brasil”, produzido pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) no ano passado, confirma a dependência da passagem, ou seja, do usuário. Aponta que o transporte coletivo no Brasil se mantém com R$ 59 bilhões ao ano, dos quais 89,8% (ou R$ 52,9 bilhões) vêm de tarifas cobradas dos passageiros. As subvenções públicas representam apenas 10,2% do montante, enquanto as receitas extra-tarifárias (como publicidade e locação de espaços, por exemplo) somam R$ 375 mil.
Foi por entender ser injusto deixar 90% do custo de um serviço primordial à sociedade somente nas mãos dos usuários que o Inesc fez o estudo para propor ao Congresso Nacional a criação de um fundo de financiamento ao transporte público, com recursos vindos dos cofres públicos, de empresas privadas e até de pessoas que optam por não utilizar o transporte coletivo para se locomover. O entendimento é de que usando ou não o ônibus, toda a sociedade se beneficia do transporte coletivo, seja ao encontrar mais espaços nas vias ou ao garantir que um funcionário dependente do transporte chegue ao trabalho.
Estudo do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) aponta que o transporte coletivo no Brasil se mantém com R$ 59 bilhões ao ano, dos quais 89,8% vêm de tarifas cobradas dos passageiros. As subvenções públicas representam apenas 10,2% do montante. Foto: Brenda Alcântara/JC Imagem
Esse inclusive, é o pensamento dos países estrangeiros, principalmente os europeus. Em parte dos EUA também. Nova York, por exemplo, trata o transporte coletivo metroviário e por ônibus como rei, destinando bilhões para os sistemas a partir de uma espécie de mix de impostos e taxas. “O Brasil ainda vê o transporte coletivo como uma atividade privada, que deve ter soluções como um negócio privado. Trata como um serviço cujo custo depende da receita obtida apenas com a demanda de passageiros. Ainda não consegue enxergar a importância dele para a vida das pessoas e a economia do País. Veja o que acontece com as atividades econômicas das cidades quando é deflagrada uma greve do transporte público. Sem um fundo público, alimentado pelas mais diferentes esferas públicas e setores da sociedade, nunca teremos um transporte de qualidade”, atesta o consultor em transporte Germano Travassos.
Abaixo, confira algumas das propostas pensadas e parcialmente executadas:
TAXAR APLICATIVOS (UBER E 99)
Com o avanço dos apps de transporte privado de passageiros, a ideia é que a operação gere receitas para os governos e sejam revertidas para o transporte coletivo. Porto Alegre (RS) estuda adotar e Fortaleza (CE) já o fez. Criou a Lei 10.751 de 08/06/2018, que tem no seu Artigo 10 a possibilidade de as operadoras trocaram o pagamento da taxa de 2% pelo uso do sistema viário da cidade por ações mitigadoras voltadas para a mobilidade urbana. Entre elas, a implantação de faixa exclusiva para os ônibus e/ou patrocínio de estações do sistema de compartilhamento de bicicletas. Tudo isso condicionado ao número de adesão de motoristas na plataforma. Mesmo que os valores não sejam imponentes para a imponência da operação de um transporte público é um começo e há simbolismo na decisão da gestão pública.
Confira as exigências de Fortaleza na íntegra:
Lei Nº 10751 DE 08/06/2018
Art. 10. As Medidas Mitigadoras de Impacto na Mobilidade Urbana são instrumentos eficazes de incentivo aos transportes coletivos ou não motorizados e poderão ser utilizados como abatimento da outorga onerosa das Plataformas Digitais de Transporte na seguinte proporção:
I - implantar 1km linear de faixa exclusiva de ônibus, por ano, a cada 200 (duzentos) carros cadastrados na Plataforma Digital de Transporte, contemplando a implantação da sinalização vertical e horizontal de toda a via;
II - construir 1.000m² de calçada, por ano, no padrão estabelecido pela Legislação Municipal a cada 170 (cento e setenta) carros cadastrados na Plataforma Digital de Transporte;
III - implantar 1km linear de ciclofaixa, por ano, a cada 200 (duzentos) carros cadastrados na Plataforma Digital de Transporte, contemplando a implantação da sinalização vertical e horizontal de toda a via;
IV - patrocinar 1 (uma) estação do Sistema de Bicicletas Públicas Compartilhadas (Bicicletar), por ano, no padrão estabelecido pela Prefeitura Municipal de Fortaleza, a cada 180 (cento e oitenta) carros cadastrados na Plataforma Digital de Transporte;
V - patrocinar 1 (uma) estação do Sistema de Bicicletas Públicas Compartilhadas integradas ao transporte público (Bicicleta Integrada), por ano, no padrão estabelecido pela Prefeitura Municipal de Fortaleza, a cada 900 (novecentos) carros cadastrados na Plataforma Digital de Transporte;
VI - outras intervenções de incentivo à Mobilidade Urbana que sejam previamente aprovadas pela Secretaria Municipal da Conservação e Serviços Públicos, com regramento regulamentado através de Decreto;
VII - implantar 1 (uma) estação de apoio ao ciclista, por ano, contendo ferramentas para consertos simples de bicicletas, e bomba para calibrar pneus, a cada 100 (cem) carros cadastrados na Plataforma Digital de Transporte. Parágrafo único. Os projetos para a execução das medidas mitigadoras referidas neste artigo devem ser submetidas ao Poder Público, que autorizará e fiscalizará sua execução.
ESTACIONAMENTO ROTATIVO ZONA AZUL
Está dentro da lógica defendida por técnicos de o automóvel custear o transporte coletivo, dando a ele a devida importância por responder pelo transporte de 80% da população. Fortaleza (CE) mais uma vez se destaca. Desde 2018, a cidade destina toda a receita obtida com a Zona Azul para as políticas de ciclomobilidade – o que poderia ser, no caso da RMR, revertido para o transporte. Na semana passada, a gestão anunciou a expansão do Bicicletar, o Bike PE deles, custeado com esses recursos. Até o fim de 2020, o Bicicletar passará de 80 para 210 estações.
As 80 primeiras seguem patrocinadas pela Unimed, enquanto as novas serão implantadas com recursos municipais da arrecadação da Zona Azul. Um aumento de 150% no serviço de bike sharing. O projeto de expansão começará pelo corredor Oeste de Fortaleza, tornando-se o terceiro maior sistema do tipo no Brasil em número de estações, atrás somente de Rio de Janeiro e São Paulo, e o primeiro em número de estações por habitantes. Na primeira fase, estão previstas 35 estações na região Oeste da Cidade, com a expectativa de beneficiar mais de 400 mil pessoas.
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TAXAR O AUTOMÓVEL E O IPVA
É mais um modelo em que o transporte individual custeia o transporte coletivo. Essa taxação poderia vir de um acréscimo no licenciamento dos veículos. Outra opção é destinar parte do IPVA, que tem a sua origem nos veículos particulares, para a mobilidade urbana. Atualmente, Pernambuco não utiliza nenhum percentual desse recurso – R$ 1,3 bilhão em 2019 – em projetos ou políticas de mobilidade urbana, muito menos no transporte coletivo. É um dinheiro destinado a outras áreas do governo.
CONFIRA MAIS INFORMAÇÕES SOBRE O IPVA ENVIADAS PELA SECRETARIA DA FAZENDA DE PERNAMBUCO:
1) O IPVA é um imposto estadual, utilizado apenas pelo Estado certo? Não há repasse dele ou de parte dele para municípios, por exemplo?
SEFAZ – O IPVA – Imposto Sobre a Propriedade de Veículos Automotores é de competência estadual e do Distrito Federal, conforme disposto no Art. 155 da Constituição Federal. Entretanto, pertence aos municípios o produto de 50% da arrecadação do IPVA dos veículos licenciados em seu território, de acordo com o art. 158, III da mesma C. F., que trata da repartição das receitas tributárias. Ou seja, o estado fiscaliza e arrecada, e 50% do IPVA é repassado aos municípios.
2) Quanto Pernambuco arrecada de IPVA por ano? Qual o histórico de arrecadações pelo menos nos últimos cinco anos? A arrecadação se mantém ou tem caído?
3) A frota veicular aumenta, a arrecadação cresce também, certo?
SEFAZ – Não necessariamente. Parte de um incremento da arrecadação é proveniente sim do crescimento da frota de veículos novos, entretanto - ao longo dos anos, a base de cálculo do IPVA sofre depreciação com relação aos usados, pois o imposto é cobrado de acordo com o valor de mercado do veículo, a partir do seu segundo ano. No primeiro ano prevalece como base de cálculo do imposto o valor de compra do veículo novo (valor da Nota Fiscal). Parte do incremento da arrecadação, portanto, se dá também pela fiscalização e estratégias de cobranças da SEFAZ, juntamente com o DETRAN e PGE.
4) Qual a destinação dos recursos do IPVA? Vão para onde? É possível especificar área por área, com seus valores?
SEFAZ – Por se tratar de um imposto, não há destinação vinculada a alguma área específica de custeio ou investimento. Os recursos são utilizados de forma geral para financiar as ações do poder público, conforme a dotação orçamentária, a cada exercício da administração.
5) Essa destinação é a mesma todos os anos?
SEFAZ – A destinação do IPVA dependerá, a cada exercício, do que for previsto no orçamento do Estado. A destinação respeitará também o plano plurianual e a lei de diretrizes orçamentárias.
6) Qual o trâmite da arrecadação do IPVA? Depois de arrecadado, para onde vai o recurso e quanto tempo isso leva?
SEFAZ – O recurso vai para a conta única do Estado, que por sua vez faz a repartição com os municípios e depois repassa a parte que cabe ao governo estadual às suas unidades gestoras para utilização.
7) Quais legislações regem o IPVA, que garantam a autonomia do Estado e o uso correto dos recursos?
SEFAZ – A Constituição Federal e, no âmbito do Estado, é a Lei nº 10.849/92 que dispõe sobre o IPVA, além dos Decretos Estaduais, que tratam da regulamentação da referida Lei. Atualmente, o Decreto nº 48.450/2019 também é um normativo importante, pois dispõe sobre os valores e prazos do IPVA, para o exercício 2020. Outras leis, decretos e portarias dispõem, tratam conforme o caso, de isenções, concessões de benefícios, parcelamentos entre outros normativos no IPVA. A consolidação completa da legislação principal do IPVA está publicada no endereço: https://www.sefaz.pe.gov.br/Legislacao/Tributaria/Consolidada-Por-Assunto/Paginas/IPVA.aspx
8) A arrecadação do imposto é obrigatoriamente voltada para a área de mobilidade urbana? Não sendo, quanto é destinado para essa área por ano?
SEFAZ – Como já dito, não há destinação verba “carimbada” e obrigatória para custeio a alguma área específica de custeio ou investimento. Os recursos são utilizados de forma geral para custeio e investimento em políticas públicas, tais como educação, saúde, segurança pública entre outros, conforme as diretrizes estratégicas do governo do estado.
9) Existe um passivo do IPVA? Se existe, é de quanto?
SEFAZ – Os débitos notificados do IPVA, correspondente aos últimos 5 anos, é de R$ 234,3 milhões em dívida ativa. Se considerarmos apenas o ano de 2019, a dívida total notificada é de R$ 91,3 milhões.
10) Qual a importância da arrecadação do IPVA para a saúde financeira de Pernambuco? Pode dar exemplos positivos de fora da mobilidade urbana (dentro também) que foram executados com os recursos do imposto?
SEFAZ – O IPVA corresponde a aproximadamente 6,5% da receita própria do Estado, são aproximadamente R$ 1,3 bilhão no orçamento estadual direcionados para obras importantes do governo, investimentos e custeio de serviços públicos. Ressaltamos a característica de seletividade do IPVA – quanto mais antigo e popular é o carro, menor é a incidência do imposto, até o limite da isenção, enquanto é mais oneroso se o veículo for mais caro e de modelo luxuoso. Políticas públicas de isenção para taxistas e portadores de necessidades especiais também são aplicáveis, conferindo justiça fiscal ao IPVA.
IMPOSTO SOBRE O COMBUSTÍVEL (CIDE MUNICIPAL)
A proposta é incluir um percentual extra ou destinar parte do que já é cobrado na gasolina, etanol e gás natural para custear o transporte público. O tributo recairia na venda diretamente no preço pago pelos consumidores no momento em que abastecem seus carros particulares nos postos. Ajudaria na infraestrutura para o setor e no barateamento da tarifa. Estudo feito pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) para a NTU (Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos) em 2016 apontava que a taxação em R$ 0,10 sobre o litro dos combustíveis permitiria uma redução de até 30% no preço da tarifa de ônibus no País. Na época, essa redução seria de R$ 1,20 na passagem. A taxação com a Cide Municipal representaria recursos na ordem de R$ 11 bilhões por ano para ser investido no custeio do sistema de transporte público brasileiro.
TAXA DE CONGESTIONAMENTO
É o antigo pedágio urbano, rebatizado por um nome mais simpático. É uma taxa cobrada em determinas áreas das cidades, especialmente no Centro, dos veículos que querem acessá-la. Há muitas tecnologias de leitura de placas que permitem fazer a cobrança de modo automático, usando câmeras ou sensores. O pedágio urbano poderia atingir também os aplicativos de transporte, pois os carros que rodam com passageiros também seriam tarifados. Londres cobra há muitos anos, por exemplo.
TAXA DE AUSÊNCIA DE VAGA
Quem não tem vaga de estacionamento em casa e, mesmo assim, possui um automóvel, paga uma taxa anual para estacionar na rua. Na Inglaterra, esse valor equivale de R$ 3 mil a R$ 4 mil por ano.
MIX DE IMPOSTOS E TAXAS
Em Paris é assim. Nos EUA também. A Metropolitan Transportation Authority (MTA), empresa pública norte-americana responsável pelo transporte público no Estado de Nova Iorque, recebe bilhões de dólares obtidos a partir de impostos, taxas cobradas das mais diferentes esferas públicas e da sociedade, além de subsídios, para garantir o transporte de 11 milhões de passageiros por dia. Em 2017, a receita total do MTA foi de US$ 15,3 bilhões.
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