O transporte público urbano no Brasil está com os dias contados quando a pandemia do coronavírus passar? Voltará a uma operação ainda pior do que já tinha em muitas cidades? Com os passageiros sendo obrigados a enfrentar superlotações que se tornarão ainda mais perigosas pelo risco de contágio? E, o que é pior: teremos serviços reduzidos ou suspensos, deixando a população que só conta com os modais coletivos para se deslocar abandonada? Ou, ainda: veremos a supremacia do automóvel retornar ainda maior às nossas cidades, com ruas, avenidas e espaços públicos tomados pelo transporte individual e os congestionamentos que eles provocam?
É em busca dessas respostas e na tentativa de apontar caminhos e sugerir soluções que a Coluna Mobilidade inicia a série de reportagens O futuro do transporte público no pós-pandemia. Nos próximos quatro domingos estaremos abordando recortes sobre essa que, pelo que dizem os maiores especialistas da mobilidade urbana brasileira e mundial, é a maior crise já enfrentada pelo setor de transporte coletivo urbano, que por mais qualidade que tenha, tem nas aglomerações a sua essência. Ou seja, vai sempre estar vulnerável às contaminações.
CONFIRA AS REPORTAGENS DA SÉRIE O FUTURO DO TRANSPORTE PÚBLICO NO PÓS-PANDEMIA
Novo conceito de transporte público no pós-pandemia
Intermodalidade é um caminho necessário e urgente
Um SUS para a mobilidade urbana no pós-pandemia
SISTEMAS DE ÔNIBUS SÃO OS MAIS VULNERÁVEIS
Os números do setor de transporte urbano coletivo por ônibus não deixam dúvidas: o setor está destruído. Perdeu, nacional e mundialmente, mais de 70% da demanda de passageiros e, com ela - pelo menos no caso do Brasil - a receita que o sustenta. Nacionalmente, o prejuízo em dois meses de pandemia já está em R$ 2,2 bilhões segundo dados da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU). Já há 11 empresas de ônibus sob alto risco de encerrar as atividades no País. A situação não é diferente quando o recorte é metropolitano regional ou municipal. No caso do Sistema de Transporte Público de Passageiros da Região Metropolitana do Recife (STPP/RMR) o prejuízo também é enorme. O Grande Recife Consórcio de Transportes Metropolitano (CTM) revela que a pandemia já provocou um prejuízo de R$ 155 milhões e que a queda de demanda está em 70% - teve um leve alívio em relação ao auge do isolamento, quando superou 75%.
- O futuro incerto do transporte público no pós-pandemia
- Bicicleta como solução para o pós-pandemia do coronavírus
- Tecnologia será fundamental para o transporte coletivo quando o desconfinamento chegar
- As respostas para os impactos da pandemia na mobilidade urbana
- Pela apropriação das cidades no pós-pandemia
- Cidades precisam de uma nova rotação no pós-pandemia
- Eles não podem parar. E estão morrendo
O transporte público é uma das grandes vítimas dessa pandemia. Estimamos quebras de 20% a 30% das empresas de transporte. A demanda vai cair a níveis que não garantem a sobrevivência dos sistemas. É uma situação que vai questionar qual é o papel do Estado. Que vai exigir decisões políticas não só pelo aspecto da mobilidade, mas do emprego, do social, já que o setor é um grande empregador. Na Europa, por exemplo, as pessoas se afastaram do transporte público por falta de confiança. Em paralelo, as novas mudanças, o home office, a descoberta para muitos de que não precisa mais gastar duas horas para ir e outras duas para voltar. O desafio de atrair as pessoas é giganteRosário Macário, coordenadora de mobilidade urbana do Instituto Europeu de Inovação e Tecnologia (EIT) da Universidade de Lisboa
Maurício Pina, diretor de Planejamento do CTM apresenta números impressionantes: o STPP/RMR está transportando, em média, 1,2 milhão de passageiros por dia, quando transportava 2 milhões. Setenta das 399 linhas do sistema foram desativadas temporariamente e o Sistema Estrutural Integrado (SEI), a integração metropolitana, foi bastante desfigurado por falta de demanda. “E o pior é que o cenário futuro é muito ruim. Os deslocamentos continuam sendo, em 80% dos casos, para trabalho e educação. A demanda por educação será recuperada mais rapidamente, mas a de trabalho não. Estima-se mais 12 milhões de desempregados no País devido à crise do coronavírus”, alerta o diretor de Planejamento do CTM, Maurício Pina.
Nas contas do setor empresarial, foram R$ 33 milhões de perda de receita apenas em abril, com o mês de maio apresentando forte tendência a ser o mesmo. Somente as empresas permissionárias - que não são licitadas - acumularam R$ 22 milhões. São 9 das 11 operadoras do sistema. Os Consórcios Conorte e MobiPE - compostos por três e duas empresas, respectivamente - acumularam a diferença.
Novas fontes de recursos serão necessárias. É impensável a retomada do transporte sem essa lógica. As novas regras de convivência e higienização que terão de ser impostas quando o novo normal chegar - como ocupação máxima dos ônibus, separação de assentos, por exemplo -, irão aumentar os custos de operação. O passageiro não conseguirá pagar sozinho, como acontece atualmente no PaísMaurício Pina, diretor de Planejamento do CTM
Por isso tudo é chegado o momento de uma discussão ampla sobre a mudança na forma de financiamento do transporte por ônibus. Não estamos falando em ajuda ao empresário, mas à sobrevivência do sistema, que é operado pelo setor privado. Para professores, especialistas, operadores e estudiosos do transporte público, o momento é ímpar para rever o desprezo que o Brasil sempre teve com o setor. Sob todos os aspectos. Da falta de valorização à ausência de recursos. Por isso, enxergam que o setor tem dois desafios imediatos para o pós-pandemia: manter os passageiros de antes, afugentados pelo medo da contaminação, e conseguir receitas extra tarifárias - incluindo aí o financiamento social do transporte público. Ou seja, toda a sociedade, de alguma forma, pagando para mantê-lo, sendo ou não usuária.
“Novas fontes de recursos serão necessárias. É impensável a retomada do transporte sem essa lógica. As novas regras de convivência e higienização que terão de ser impostas quando o novo normal chegar - como ocupação máxima dos ônibus, separação de assentos, por exemplo -, irão aumentar os custos de operação. O passageiro não conseguirá pagar sozinho, como acontece atualmente no País”, defende Maurício Pina, que também é professor da UFPE. Em videoconferência para discutir a demanda do transporte público no pós-pandemia, promovida pelo Programa de Pós-Graduação em Transportes e Gestão das Infraestruturas Urbanas da UFPE e que reuniu especialistas do Brasil, América Latina e Europa, na quinta-feira (4/6), a urgência dessa ajuda foi unanimidade.
“O transporte público é uma das grandes vítimas dessa pandemia. Estimamos quebras de 20% a 30% das empresas de transporte. A demanda vai cair a níveis que não garantem a sobrevivência dos sistemas. É uma situação que vai questionar qual é o papel do Estado. Que vai exigir decisões políticas não só pelo aspecto da mobilidade, mas do emprego, do social, já que o setor é um grande empregador. Na Europa, por exemplo, as pessoas se afastaram do transporte público por falta de confiança. Em paralelo, as novas mudanças, o home office, a descoberta para muitos de que não precisa mais gastar duas horas para ir e outras duas para voltar. O desafio de atrair as pessoas é gigante”, alerta Rosário Macário, coordenadora de mobilidade urbana do Instituto Europeu de Inovação e Tecnologia (EIT) da Universidade de Lisboa, órgão da União Europeia e que planeja soluções de mobilidade sustentável.
“Novas fontes de recursos serão necessárias. É impensável a retomada do transporte sem essa lógica. E, em primeiro lugar, é fundamental pensar na sobrevivência do setor sob o risco de haver um colapso do serviçoJurandir Fernandes, presidente da Divisão UITP América Latina
TRANSPORTE SOBRE TRILHOS TAMBÉM ENFRENTARÁ DESAFIOS
A situação não é tão ruim como a do ônibus, mas os sistemas de transporte sobre trilhos correm o risco de serem abandonados ou sofrerem ainda mais com a superlotação e a degradação - algo comum fora do eixo São Paulo-Rio de Janeiro. Mesmo sendo basicamente subsidiados pelos governos - estaduais e federal -, o setor também é uma das vítimas da pandemia do coronavírus. Já são R$ 1,6 bilhão de perda de receita tarifária em aproximadamente dois meses. Os dados são da Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos (ANPTrilhos), que ainda aponta que os sistemas de metrôs e trens urbanos de todo o Brasil apresentaram uma redução de 31,7% no número de passageiros transportados no 1º trimestre/2020. Na Região Nordeste, a redução de demanda de passageiros foi de 48,5% no 1º trimestre. Somente nos últimos 15 dias do mês de março, a ANPTrilhos estima que os operadores de todo o Brasil perderam R$ 500 milhões de arrecadação de bilheteria.
“Os sistemas de metrô, trem urbano e Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) estão registrando uma queda média semanal de 74% na quantidade de passageiros transportados, sendo que alguns sistemas já registram redução de mais de 90%. A crise gerada pela pandemia do coronavírus está mostrando a fragilidade da infraestrutura de transporte e a necessidade de uma nova visão em relação ao setor por parte dos governantes. O transporte é um serviço essencial e direito constitucional do cidadão e neste momento é necessária a reavaliação de tributos e encargos setoriais, de novas formas de financiamento, entre outras medidas que tornem o transporte sustentável, mesmo diante de uma anormalidade excepcional, como a que estamos vivendo”, alerta Roberta Marchesi, diretora executiva da ANPTrilhos.
ALGUNS EXEMPLOS DE FINANCIAMENTO SOCIAL AO TRANSPORTE PÚBLICO
IMPOSTO SOBRE O COMBUSTÍVEL (CIDE MUNICIPAL)
A proposta é incluir um percentual extra ou destinar parte do que já é cobrado na gasolina, etanol e gás natural para custear o transporte público. O tributo recairia na venda diretamente no preço pago pelos consumidores no momento em que abastecem seus carros particulares nos postos. Ajudaria na infraestrutura para o setor e no barateamento da tarifa. Estudo feito pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) para a NTU em 2016 apontava que a taxação em R$ 0,10 sobre o litro dos combustíveis permitiria uma redução de até 30% no preço da tarifa de ônibus no País. Na época, essa redução seria de R$ 1,20 na passagem. A taxação com a Cide Municipal representaria recursos na ordem de R$ 11 bilhões por ano para ser investido no custeio do sistema de transporte público brasileiro.
ESTACIONAMENTO ROTATIVO ZONA AZUL
Está dentro da lógica defendida por técnicos de o automóvel custear o transporte coletivo, dando a ele a devida importância por responder pelo transporte de 80% da população. Fortaleza (CE) se destaca. Desde 2018, a cidade destina toda a receita obtida com a Zona Azul para as políticas de ciclomobilidade – o que poderia ser, no caso da RMR, revertido para o transporte.
TAXAR O AUTOMÓVEL E O IPVA
É mais um modelo em que o transporte individual custeia o transporte coletivo. Essa taxação poderia vir de um acréscimo no licenciamento dos veículos. Outra opção é destinar parte do IPVA, que tem a sua origem nos veículos particulares, para a mobilidade urbana. Atualmente, Pernambuco não utiliza nenhum percentual desse recurso – R$ 1,3 bilhão em 2019 – em projetos ou políticas de mobilidade urbana, muito menos no transporte coletivo. É um dinheiro destinado a outras áreas do governo.
MIX DE IMPOSTOS E TAXAS
Em Paris é assim. Nos EUA também. A Metropolitan Transportation Authority (MTA), empresa pública norte-americana responsável pelo transporte público no Estado de Nova Iorque, recebe bilhões de dólares obtidos a partir de impostos, taxas cobradas das mais diferentes esferas públicas e da sociedade, além de subsídios, para garantir o transporte de 11 milhões de passageiros por dia. Em 2017, a receita total do MTA foi de US$ 15,3 bilhões.
SAIBA MAIS AQUI
https://interactive.nydailynews.com/project/mta-funding/
TAXA DE AUSÊNCIA DE VAGA
Quem não tem vaga de estacionamento em casa e, mesmo assim, possui um automóvel, paga uma taxa anual para estacionar na rua. Na Inglaterra, esse valor equivale de R$ 3 mil a R$ 4 mil por ano.
TAXA DE CONGESTIONAMENTO
É o antigo pedágio urbano, rebatizado por um nome mais simpático. É uma taxa cobrada em determinas áreas das cidades, especialmente no Centro, dos veículos que querem acessá-la. Há muitas tecnologias de leitura de placas que permitem fazer a cobrança de modo automático, usando câmeras ou sensores. O pedágio urbano poderia atingir também os aplicativos de transporte, pois os carros que rodam com passageiros também seriam tarifados. Londres cobra há muitos anos, por exemplo.
Porto Alegre
Porto Alegre (RS) está reenviando um projeto do executivo à Câmara de Vereadores para criar um pedágio urbano de acesso à área central da cidade. Inicialmente, a prefeitura propôs a cobrança no acesso à cidade, mas houve muita rejeição.
TAXAR APLICATIVOS (UBER E 99)
Com o avanço dos apps de transporte privado de passageiros, a ideia foi que a operação gere receitas para os governos e sejam revertidas para o transporte coletivo. Porto Alegre (RS) estuda adotar e Fortaleza (CE) já o fez. Criou a Lei 10.751 de 08/06/2018, que tem no seu Artigo 10 a possibilidade de as operadoras trocaram o pagamento da taxa de 2% pelo uso do sistema viário da cidade por ações mitigadoras voltadas para a mobilidade urbana. Entre elas, a implantação de faixa exclusiva para os ônibus e/ou patrocínio de estações do sistema de compartilhamento de bicicletas. Tudo isso condicionado ao número de adesão de motoristas na plataforma. Mesmo que os valores não sejam imponentes para a imponência da operação de um transporte público é um começo e há simbolismo na decisão da gestão pública.
PROPOSTA DE AJUDA AO SETOR DE ÔNIBUS DA NTU
O setor segue com a proposta do Programa Emergencial Transporte Social. No Congresso, a efetivação desse programa motivou a apresentação, pelo Deputado Federal Jerônimo Goergen (PP/RS), de emenda à Medida Provisória nº 936/2020, mas foi retirada pelo relator, Deputado Orlando Britto, antes da votação. A efetivação do Programa também está prevista em emenda à Medida Provisória nº 944/2020 (que institui o Programa Emergencial de Suporte a Empregos), que aguarda votação na Câmara.
No Senado, foi encaminhado o Projeto de Lei n° 2025/2020, apresentado pelo senador Marcos Rogério (DEM/RO), com o objetivo de resguardar o exercício do transporte público rodoviário urbano e semiurbano durante o período de calamidade pública decorrente da Covid-19. A proposição está baseada no Programa Emergencial Transporte Social, proposto pela ANTP, Fórum Nacional de Secretários de Mobilidade e NTU, com o aval da Frente Nacional dos Prefeitos.
A Medida Provisória nº 975/2020, publicada no dia 01/06 e que institui o Programa Emergencial de Acesso a Crédito para empresas com receita bruta entre 360 mil e 300 milhões de reais, traz alguma esperança de alívio para pequenas e médias empresas do setor.
Citação
O transporte público é uma das grandes vítimas dessa pandemia. Estimamos quebras de 20% a 30% das empresas de transporte. A demanda vai cair a níveis que não garantem a sobrevivência dos sistemas. É uma situ
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Jurandir Fernandes, presidente da Divisão UITP América Latina
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