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Fim da Lei Seca? STF pode flexibilizar a proibição de beber e dirigir

Julgamento de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade movida há 12 anos pela Abrasel e CNC acontece nesta quarta (18) e pode anular a legislação que tem ajudado a combater o hábito de beber e dirigir

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Roberta Soares

Publicado em 17/05/2022 às 15:49 | Atualizado em 18/05/2022 às 12:35
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A Lei Seca, que desde 2008 começou a combater o velho e assassino hábito de achar que beber e assumir a direção de um veículo motorizado não era nada demais, está sob risco no Brasil. Nesta quarta-feira (17/5), o Supremo Tribunal Federal (STF) irá julgar uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) que poderá dificultar em muito a aplicabilidade da legislação que marcou e marca um divisor de águas na matança promovida no trânsito brasileiro.

Antes de mais nada, é preciso relembrar os números para quem não lembra ou não sabe: o trânsito no País promove a morte de mais de 30 mil pessoas por ano, deixa outras 300 mil mutiladas e ainda custa R$ 132 bilhões à saúde e à economia públicas, segundo estudo do Ipea.

Embora já tenham se passado 14 anos desde a sua criação, a Lei 11.705 de 2008, mais conhecida como Lei Seca, é alvo de um pedido de inconstitucionalidade há 12 anos movido pela Associação Brasileira de Restaurantes e Empresas de Entretenimento (Abrasel) e a Confederação Nacional do Comércio (CNC).

As entidades alegam que a legislação fere os princípios da isonomia, razoabilidade, proporcionalidade e equidade, além da liberdade individual, econômica e da livre iniciativa. Na ADI, os questionamentos são basicamente sobre os Artigos 1º, 2º, 3º e 6º da Lei 11.705, que determinam a proibição da comercialização de bebidas alcoólicas em rodovias federais.

DAY SANTOS/JC IMAGEM
Antes de mais nada, é preciso relembrar que o trânsito no País promove a morte de mais de 30 mil pessoas por ano, deixa outras 300 mil mutiladas e ainda custa R$ 132 bilhões à saúde e à economia públicas, segundo estudo do Ipea - DAY SANTOS/JC IMAGEM

Mas as entidades também defendem que a inconstitucionalidade da Lei Seca ocorre porque o cidadão não pode ser punido quando se nega a realizar o teste do bafômetro, uma vez que essa negativa é expressão do exercício do seu direito de não produzir prova contra si mesmo.

E que não seria qualquer concentração de álcool no sangue que influenciará o motorista. Além disso, que a penalidade administrativa seria aplicada da mesma forma, independentemente da quantidade de álcool aferida pelo etilômetro ou bafômetro.

Isentar de atuação o condutor abordado pela fiscalização que se recusa a fazer o teste do etilômetro/bafômetro - como acontece atualmente - é um golpe de morte sobre a Lei Seca.

Para se ter ideia, em Pernambuco - um dos Estados do Brasil onde a Lei Seca é mais efetiva - mais de 80% das autuações são por recusa, ou seja, quando o motorista se nega a fazer o teste, mas o consumo de álcool fica evidente para a fiscalização.

A proibição de venda de bebidas nas áreas urbanas foi derrubada do texto. Mas, mesmo assim, a ação seguiu os trâmites judiciais e agora chega ao STF - que seria o céu da Justiça brasileira, para fazer o leitor entender a dimensão do julgamento.

Em resumo, atualmente, a Abrasel questiona três pontos: a multa para quem recusa o teste no etilômetro, a privação do direito de ir e vir de quem fica retido numa blitz e o fato de a lei ter "criminalizado boa parte da população adulta", como explica a entidade.

Se o STF atender às entidades e identificar a inconstitucionalidade parcial ou total da Lei 11.705, a Lei Seca enfrentará muitas dificuldades para ser exercida na prática.

ALEXANDRE GONDIM/JC IMAGEM
Se o STF atender às entidades e identificar a inconstitucionalidade parcial ou total da Lei 11.705, a Lei Seca enfrentará muitas dificuldades para ser exercida na prática - ALEXANDRE GONDIM/JC IMAGEM

EXPECTATIVA

Pelo bem do trânsito brasileiro, a expectativa é de que não haja o deferimento do pedido pelo STF. A Procuradoria Geral da República (PGR) deu parecer pela improcedência do pedido. E a Advocacia Geral da União (AGU) seguiu a mesma linha, recomendando o não conhecimento da ação direta.

Para engrossar o paredão de resistência, entidades técnicas e a sociedade civil organizada estão se mobilizando contra um possível deferimento do STF.

“Em 2017, quase dez anos depois da promulgação da Lei Seca, dados de uma pesquisa da Escola Nacional de Seguros demonstraram que a medida poupou mais de 40 mil vidas no trânsito e 235 mil pessoas da invalidez permanente. Evitando também uma perda de R$ 74,5 bilhões para a economia”, diz a União dos Ciclistas do Brasil (UCB) em comunicado.

“Os dados demonstram o impacto positivo da Lei Seca, uma legislação efetiva na prevenção de mortes e lesões no trânsito, lembrando que o trabalho de conscientização para evitar a combinação bebida e direção é complexo. Apesar dos resultados positivos da lei, um levantamento realizado em todo o Estado de São Paulo mostra que 42% das mortes no trânsito são por suspeita de embriaguez ao volante”, segue.

“Diante dessas e de outras evidências, as entidades que assinam esta nota repudiam a Ação Direta de Inconstitucionalidade da Lei n° 11.705 de 2008 - Lei Seca, que caso seja determinada como inconstitucional, estará em conflito com outros direitos garantidos na Constituição Federal, tendo impacto no número de mortes e lesões no trânsito no Brasil”, finaliza.

Além da UCB, assinam o documento a Ciclovida - Associação de Ciclistas Urbanos de Fortaleza e o Instituto Corrida Amiga.

MAIS REAÇÃO

O Instituto Zero Mortes, que busca a redução total de vítimas fatais no trânsito brasileiro, segue a mesma linha. “Se a Carteira nacional de Habilitação é uma concessão do Estado, onde a contrapartida é o respeito às normas e regras de trânsito - onde se dirigir não se deve beber -, entendemos que não se deveria valer-se de um preceito constitucional para acobertar o descumprimento de uma regra, pois trata-se de um ato de covardes e inescrupulosos que atentam contra a vida de inocentes”, defende Paulo Pêgas, diretor-presidente do Zero Mortes.

E lembra: “De 2007 a 2018, foram 479 mil óbitos associados a sinistros de trânsito que refletiram um custo de R$ 1,58 trilhões ao País. Apesar dos números epidemiológicos, corre-se o risco de que a decisão da ADI se volte para o fundamento legal e proteja a irresponsabilidade ou delinquência, em lugar do fundamento moral”, reforça.

Em entrevista ao Portal do Trânsito, a deputada Federal Christiane Yared (PP/PR), que teve um filho assassinado por um motorista alcoolizado, foi categórica ao definir a importância da Lei Seca para a conscientização dos motoristas.

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As entidades também defendem que a inconstitucionalidade da Lei Seca ocorre porque o cidadão não pode ser punido quando se nega a realizar o teste do bafômetro, uma vez que essa negativa é expressão do exercício do seu direito de não produzir prova contra si mesmo - DAY SANTOS/JC IMAGEM

“Existem dois momentos na segurança no trânsito: o antes e o depois da Lei Seca. Antes, era bem comum encontrar diversos motoristas embriagados no trânsito. O cidadão saía do trabalho, passava no bar, enchia a cara e depois voltava dirigindo para casa. Era uma farra total! Após a aprovação da Lei Seca houve queda no número de mortes decorrentes de acidentes de trânsito no país todo. Embora ainda haja um número significativo de condutores que burlam a lei e dirigem embriagados, há que se reconhecer que o rigor da lei tem coibido esse comportamento”, diz.

“A Lei Seca, além de ter o objetivo de reduzir o número de mortes em sinistros de trânsito em curto e médio prazo, também possui caráter educacional. Conforme o tempo passa, a ideia de ter um motorista da rodada, alguém que não bebe e leva os amigos para casa, está mais difundida. Esse é o primeiro passo para construir uma sociedade mais segura para todos”, reforça.

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