COLUNA MOBILIDADE

Mutilados: negligência que mutila e destrói sonhos

O ex-bombeiro civil perdeu a perna esquerda ao cair da garupa de uma motocicleta em um dos diversos buracos que dominavam o chamado contorno urbano que a BR-101 - a rodovia mais importante do Brasil - faz do Grande Recife

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Roberta Soares

Publicado em 24/07/2022 às 8:20
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O trânsito e a negligência que o envolve arruinaram os sonhos e os projetos de vida de Ítalo Abner Pereira Pinto, ex-bombeiro civil de 36 anos. Aos 31, Abner perdeu a perna esquerda ao cair da garupa de uma motocicleta em um dos diversos buracos que dominavam o chamado contorno urbano que a BR-101 - a rodovia mais importante do Brasil - faz do Grande Recife, ainda em 2016.

Os buracos da rodovia, aliás, sempre fizeram parte da rotina de quem reside em Pernambuco. São quase sazonais. Três anos depois do sinistro com o bombeiro civil foram corrigidos num projeto de requalificação duvidoso e até hoje investigado pela Justiça Federal.

Ítalo era passageiro da motocicleta conduzida pelo irmão mais novo e teve a perna praticamente arrancada do corpo quando caíram no chão ao tentar desviar de uma cratera que os surpreendeu na Guabiraba, bairro da periferia da Zona Norte do Recife, rodeado pela BR-101.

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O motorista de um ônibus que trafegava ao lado, também surpreendido pelo mesmo buraco - como conta Ítalo -, não conseguiu frear a tempo e esmagou a perna do bombeiro civil. Ítalo passou por cinco cirurgias desde então. O irmão, que conduzia a moto, ficou bem. Teve ferimentos, mas nenhuma sequela.

ARTES/JC
Selo da série Mutilados - As verdadeiras vítimas do trânsito - ARTES/JC

No caso do sinistro que os envolveu, a causa foi a negligência do poder público, algo comum no Brasil e ainda mais no setor de trânsito e transporte. Não teve álcool nem velocidade, mas, mesmo assim, mutilou e, por pouco, não matou - o que evidencia o quanto o setor precisa de atenção do País.

“Não há dúvidas sobre isso. O próprio registro do acidente feito pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) confirmou que a causa foram os buracos da BR-101. Meu irmão trafegava certo, na velocidade adequada, quando foi surpreendido por uma cratera na altura da Guabiraba”, relembra Ítalo Abner.

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“Passamos por vários trechos da BR que estavam quase destruídos, sempre com muito medo e cuidado. Mas quando achamos que a pista estava melhor, o buraco gigante nos pegou. Meu irmão tentou desviar, mas caiu e o ônibus que estava próximo não conseguiu parar”, segue.

Atualmente, cinco anos depois de perder a perna - completados no dia 23 de junho de 2022 -, Abner dá risada e brinca, consciente de que venceu a principal batalha, só sua: a reabilitação para conseguir recuperar a autonomia e seguir vivendo.

FOTOS: LÉO MOTTA/JC IMAGEM
Ítalo era passageiro da motocicleta conduzida pelo irmão mais novo e teve a perna praticamente arrancada do corpo quando caíram no chão ao tentar desviar de uma cratera na BR-101 - FOTOS: LÉO MOTTA/JC IMAGEM
LÉO MOTTA/JC IMAGEM
Ítalo Abner, ex-bombeiro civil que perdeu a perna num sinistro de trânsito de moto provocado pelos buracos na BR-101, no Grande Recife - LÉO MOTTA/JC IMAGEM

“Hoje, depois de tudo, tudo, de toda a luta, nem lembro que tive uma perna. A prótese me deu essa autonomia (risos). Mas não tenho o mesmo ritmo, lógico, e o que sinto mais falta é da mobilidade para acompanhar meus filhos”, desabafa.

Ítalo tem três filhos, um deles do primeiro casamento da mulher: Israel, 5 anos, Ícaro, 7, e Guilherme Felipe, 16.

LUTA E DESAFIOS DIÁRIOS

Mas para chegar a esse estágio pleno de aceitação foi um longo caminho e muitos desafios. Inclusive econômicos, que fazem parte da realidade de muitos dos mutilados pelo trânsito.

A busca pela autonomia do pai de família foi intensa. “O começo é sempre mais difícil. Hoje, com uma boa prótese, consigo viver normalmente”, diz o ex-bombeiro civil.

“Tem muitas restrições e obstáculos, como descer escadas, por exemplo. Ainda mais para mim, que tenho 1,92 metro. Mas procuro viver uma vida normal. Sei que sou um vencedor só pelo fato de estar vivo e de ver meus filhos cresceram”, afirma.

Ítalo precisou brigar judicialmente para conseguir indenizações financeiras que permitissem sobreviver com a família. Conseguiu em parte, e ainda segue brigando.

LÉO MOTTA/JC IMAGEM
Ítalo era passageiro da motocicleta conduzida pelo irmão mais novo e teve a perna praticamente arrancada do corpo quando caíram no chão ao tentar desviar de uma cratera - LÉO MOTTA/JC IMAGEM
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Ítalo Abner, ex-bombeiro civil que perdeu a perna num sinistro de trânsito de moto provocado pelos buracos na BR-101, no Grande Recife - LÉO MOTTA/JC IMAGEM

Atualmente, além do auxílio-acidente (benefício previdenciário indenizatório pago pelo INSS) de um pouco mais de um salário mínimo, Ítalo Abner recebe um salário vitalício pago pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (Dnit) devido aos buracos da BR-10.

Ainda luta por uma indenização financeira.
“O custo da reabilitação é muito alto. O que é oferecido pelo SUS - e ainda bem que temos ele, caso contrário seria muito pior - não é de boa qualidade. E tudo para amputação é muito caro”, relata.

“Um pé de fibra de carbono, por exemplo, custa mais de R$ 5 mil. Um encaixe de joelho de boa qualidade custa R$ 12 mil. E a manutenção também é cara. E para ter uma boa qualidade de vida é necessário ter materiais bons. O que é fornecido pelo SUS é paliativo”, ensina.

ACERVO PESSOAL
Ítalo Abner, ex-bombeiro civil que perdeu a perna por causa de buracos na BR-101 no contorno do Grande Recife - ACERVO PESSOAL
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Ítalo Abner, ex-bombeiro civil que perdeu a perna por causa de buracos na BR-101 no contorno do Grande Recife - ACERVO PESSOAL

Sobre os sonhos, Ítalo Abner teve que abrir mão do maior deles até o sinistro: ser bombeiro civil.

Quer ajudar Ítalo?
Doações podem ser feitas à família, que necessita. Contato: (81) 98505.6073 (WhatsApp)

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