A indignação que o bombeiro militar Lindomar Rodrigues, socorrista com 28 anos de profissão, demonstra nos vídeos desta reportagem deve ser sentida e compartilhada por todos. Sem distinção. Rodrigues ficou indignado ao chegar a um local de sinistro de trânsito (não é mais acidente de trânsito que se diz. Entenda) e ver uma multidão saqueando a mercadoria espalhada pela forte colisão, enquanto o motorista seguia ferido e, posteriormente, morto na cabine destruída da carreta.
O bombeiro militar se indignou com a indiferença que a sociedade vem desenvolvendo em relação à vida humana, ainda mais potencializada nos casos de mortes no trânsito - que seguem sendo vistas, em muitos casos, como ‘fatalidades’.
O vídeo desta reportagem mostra essa indignação. “Isso é roubo. Ladrões somos nós. Vocês não entendem isso não é? Tem um pai de família ali, morto. E vocês não estão nem aí, arrombando a carga", lamentou no vídeo gravado por pessoas que estavam no local.
O caso aconteceu na BR-104, na altura do município de Panelas, no Agreste pernambucano, a menos de cinco quilômetros da cidade.
De tão perigoso, o local é conhecido como Curva do Criminoso e, entre os profissionais socorristas, qualquer ocorrência naquela área já é sinônimo de estrago grande, de dor e, quase sempre, de morte.
É tanto que, naquele sinistro de trânsito, a equipe do 2º Grupamento de Bombeiros de Caruaru, comandada pelo segundo sargento Rodrigues, levou quatro horas para conseguir tirar o corpo do motorista das ferragens.
"DESUMANIDADE NUNCA VISTA", DIZ BOMBEIRO MILITAR
“Em 28 anos de profissão como socorrista - devo ser o mais antigo do Estado ainda na ativa -, nunca vi nada parecido. As pessoas saqueando a carga de sapatos da carreta baú. Ninguém estava preocupado com o motorista ferido e, talvez, ainda vivo. Nunca vamos saber”, relembra.
Foi o descaso com a vida humana diante da prática do roubo - sim, roubar produtos da carga de um veículo envolvido em sinistro de trânsito é crime de roubo e, por isso, pelo menos cinco pessoas chegaram a ser presas pela Polícia Civil de Panelas no episódio - o que mais chocou o bombeiro militar.
VEJA O MOMENTO EM QUE O BOMBEIRO SE INDIGNA
Nos vídeos, ele aparece demonstrando sua indignação e questionando as pessoas se elas não tinham vergonha de estar ali, roubando, enquanto “um pai de família” morria esmagado, preso às ferragens na carreta.
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“Talvez ninguém pudesse ter feito nada pelo motorista, identificado como Caio, um homem jovem, de 28 anos, natural do Ceará. Talvez ele já estivesse morto, é verdade. Mas estamos falando de humanidade. As pessoas perderam esse sentimento de humanidade com o próximo", diz.
Estavam tão preocupadas com a carga que não sabiam nem nos dizer quantas vítimas existiam. Algo atípico no nosso trabalho, já que as pessoas, quando chegamos aos locais, informam detalhes dos casos”, lamenta o bombeiro militar, que também é instrutor de trânsito.
MULTIDÃO DE PESSOAS SAQUEANDO A MERCADORIA
Rodrigues conta que era uma verdadeira multidão e que as pessoas não paravam de chegar. Como o local do sinistro - o km 114 da BR-104 - fica próximo ao centro de Panelas, a notícia da carga exposta se espalhou rapidamente.
“A população separava caixas e mais caixas de sapato e chegavam a brigar entre si pela mercadoria. Algo absurdo e inacreditável demais. Nunca tinha vivido algo assim. Não dessa forma, com uma pessoa ferida ou morta ainda no local”, desabafa.
VÍDEO MOSTRA AS PESSOAS SAQUEANDO A MERCADORIA
Até a chegada da Polícia Rodoviária Federal (PRF), o segundo sargento ficou no local apenas com sua equipe e conta que, diante dos seus questionamentos e críticas, a população chegou a ficar contra os bombeiros.
“As pessoas, inclusive mulheres e crianças, estavam tão despreocupadas que cheguei a ouvir um diálogo sobre pegar sapatos de crianças embaixo da carreta porque eram bons para serem vendidos. Nem mesmo o risco que poderiam correr, já que a carreta estava numa descida e poderia se mover a qualquer momento, assustava as pessoas. Muito, muito triste.
A Polícia Civil de Panelas conseguiu apreender uma pequena parte da carga de sapatos e chegou a convocar as pessoas para que devolvessem o que roubaram, alertando que a prática era criminosa. Mas o que chegou a ser recuperado não representou nem 10% do que foi roubado.
Ou seja, a desumanidade venceu.
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