Transporte público em crise: transporte coletivo ficou para trás em inovação e facilidades ao passageiro
Sistemas não inovam nem facilitam a vida do passageiro. Na RMR, a licitação das linhas não sai e fontes externas de receita seguem sendo tabu no País
O transporte público coletivo e urbano do Brasil não inova e nem facilita a vida dos passageiros. Ficou para trás em inovações e facilidades para seus clientes. E tem pago um preço alto por isso com a fuga, sempre que possível, do usuário para o carro, a moto e os aplicativos de transporte.
Houve melhorias nos sistemas de transporte em geral, sem dúvida, mas ainda muito tímidas e, por isso, insuficientes. Não há como negar a facilidade que é acompanhar o horário de chegada dos ônibus por um aplicativo como o Cittamobi - hoje o maior de mobilidade urbana do País, por exemplo.
Ou fazer a recarga dos créditos eletrônicos por um app ou via Whatsapp - algo que somente em 2024 foi viabilizado no Grande Recife sem a cobrança de taxas.
Mas o transporte público, na Região Metropolitana do Recife e na maioria das 27 capitais brasileiras que têm sistemas regulares, não consegue avançar da forma e no ritmo necessário para fugir do estigma de ser a última opção de deslocamento do cidadão. Usa por necessidade, não por opção.
Algumas vezes, inclusive, a inovação acontece, mas é muito lenta e limitada. É o caso, por exemplo, da integração temporal que levou mais de dois anos para ser implementada nos ônibus e no metrô do Grande Recife. E, mesmo assim, uma integração ‘intra-muros’ porque a matriz das linhas integradas passa, predominantemente, pelos terminais integrados.
"É diferente, por exemplo, do chamado Bilhete Único de São Paulo. Na capital paulista o passageiro tem um período de 2h para fazer integração em qualquer lugar, não apenas nos terminais. O problema dos TIs é que não existe faixa de ônibus ligando um ao outro ou ao Centro do Recife", argumenta um especialista.
TRANSPORTE PÚBLICO PRECISA SER FINANCIADO POR TODA A SOCIEDADE
A lenta inovação do setor passa por duas abordagens, segundo profissionais ouvidos pelo JC, defendidas por quem opera o transporte e cuida da gestão pública dos sistemas de ônibus e metrôs.
A falta de segurança jurídica para investir e operar com a garantia de que o serviço ofertado será pago é o argumento dos operadores. Já quem responde pela gestão alega que transporte público custa caro e não há recursos públicos para cobrir esse custo.
Por isso, a urgente necessidade de fontes extras e nacionais para financiar os sistemas. Prefeituras - que gerem a maioria do transporte coletivo no País - e Estados - como é o caso do transporte por ônibus da Região Metropolitana do Recife - não conseguem sozinhos.
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"O subsídio aos sistemas de transporte, especialmente os operados por ônibus urbanos, aumentaram no Brasil pós pandemia de covid-19, mas ainda são muito pouco. Com exceção de São Paulo - capital que investe R$ 6 bilhões por ano no transporte -, o percentual é baixo", alerta e compara um operador.
E cita o exemplo do sistema do Grande Recife. "Em média, o subsídio do sistema de ônibus é de 20% do total da arrecadação, que é de R$ 1,3 bilhão por ano. E esse subsídio que o governo do Estado dá é, em sua maioria, indireto. R$ 40 milhões, por exemplo, é o subsídio do estudante da rede pública, um recurso que não vai diretamente para o setor, compreende?", diz.
SEM SEGURANÇA JURÍDICA, NÃO HÁ INOVAÇÕES, AFIRMAM EMPRESÁRIOS
O subsídio público seria pago diretamente apenas para as duas concessionárias do transporte público da RMR - a Mobibrasil, que opera também o Corredor de BRT Leste-Oeste e o Conorte, que opera o BRT Norte-Sul. O restante da operação do sistema é feito por outras sete empresas permissionárias, ou seja, que ainda não têm contrato jurídico.
Essas empresas recebem o subsídio indiretamente. Do total de subsídios anuais - algo na ordem de R$ 350 milhões em 2024, segundo previsões -, R$ 20 milhões vão mensalmente para as concessionárias, sendo R$ 12 milhões para o Conorte e R$ 8 milhões para a Mobibrasil.
"Todo mundo precisa trabalhar com regras claras e quem não aceitar, tem que deixar o sistema. Essa é a verdade. Mas precisamos de uma definição do governo de Pernambuco porque sem contrato é impossível. O Estado não investe no transporte - porque até as gratuidades são pagas com esse subsídio - e não nos dá a segurança jurídica que precisamos", lamenta outro operador.
Embora licitadas em 2014, as concessionárias não teriam tido os aditivos dos contratos assinados pelo governo de Pernambuco até agora.
LICITAÇÃO DAS LINHAS DE ÔNIBUS É O MÍNIMO NECESSÁRIO E SÓ DEVE SAIR NO GRANDE RECIFE EM 2026
A conclusão da licitação das linhas de ônibus da RMR, iniciada em 2014, é um dos passos fundamentais para a boa operação do transporte público. Isso é consenso entre todos, operadores e gestores.
Mas a expectativa oficial do governo de Pernambuco é de que o processo seja finalizado apenas no início de 2026. E, mesmo assim, com sorte.
Para quem não recorda, a licitação das linhas de ônibus foi lançada ainda na gestão Eduardo Campos (PSB) - após mais de dez anos de idas e vindas -, implantada parcialmente em 2014, mas engavetada um ano depois devido aos custos desproporcionais estimados para o Brasil pós euforia da Copa do Mundo de 2014.
Somente 25% da operação do sistema do Grande Recife foi licitada, enquanto que 75% seguem com operadores permissionários, sem contrato jurídico de operação e dependendo, basicamente, da arrecadação tarifária.
CONFIRA OS NOVOS PRAZOS DA LICITAÇÃO DE ÔNIBUS
No início de 2024, os novos prazos da licitação das linhas de ônibus foram apresentados pelo governo de Pernambuco ao Tribunal de Contas do Estado (TCE-PE). No documento, encaminhado pelo Grande Recife Consórcio de Transportes Metropolitano (CTM), o processo será finalizado e a nova rede de transportes entrará em operação, na prática, apenas no fim de 2025.
Os contratos com os novos operadores seriam assinados apenas em julho do próximo ano, com o início da transição operacional prevista para o mês de outubro e seguindo pelo prazo de 90 dias. Confira o cronograma estabelecido pelo Estado:
1. Conclusão dos ajustes/revisão dos estudos: julho/2024 e duração de 150 dias
2. Aprovação da documentação do edital revisada pelo CTM e CSTM: setembro/2024 e duração de 30 dias
3. Submissão da documentação ao TCE/PE: dezembro/2024 e duração de 90 dias
4. Publicação do edital: março/2025 e duração de 90 dias
5. Abertura das propostas: junho/2025 e duração de 45 dias
6.Assinatura dos contratos: julho/2025 e duração de 45 dias
7. Início da transição operacional: outubro/2025 e duração de 90 dias
8. Operação efetiva dos lotes 03 a 07 pelas novas concessionárias: janeiro/2026 e duração de 90 dias
TRANSPORTE PÚBLICO CUSTA CARO E, POR ISSO, PRECISA DE FONTES DE FINANCIAMENTO
A crise histórica enfrentada pelo transporte público brasileiro e potencializada pela pandemia de covid-19 só terá solução quando o passageiro deixar de pagar, praticamente sozinho e em quase todo o País, pelo custo de operação dos sistemas.
Ou seja, separar - dentro da lógica de planejamento do transporte público - a tarifa pública (cobrada do passageiro) da tarifa técnica (necessária para viabilizar a operação). E essa mudança só é possível, na visão de especialistas no setor e a partir da experiência de outros países, criando fontes para subsidiar e financiar os sistemas de transporte público.
Esse financiamento significa recursos públicos, sem dúvida, mas também privados, cobrados através da destinação de taxas, já existentes ou não, de serviços disponíveis à população.
Seria o financiamento social do transporte público brasileiro, assunto que não é novo, praticado há décadas no mundo, mas ainda um tabu no Brasil. O mesmo país que perde, em média, 10 milhões de passageiros de ônibus, metrôs e trens a cada ano.
O estudo "Financiamento da operação dos sistemas de transporte público coletivo nas cidades brasileiras", realizado pela Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) e a Confederação Nacional do Transporte (CNT), apontou oito fontes extratarifárias complementares aos subsídios públicos dados aos passageiros. As propostas tiveram como parâmetros experiências nos sistemas de São Paulo (SP), Distrito Federal, Rio de Janeiro (RJ), Belo Horizonte (MG) e Curitiba (PR).
FONTES DE FINANCIAMENTO
Fonte 1: Tarifa sobre exploração de serviço de transporte remunerado por aplicativo, como Uber e 99
O estudo aponta ser possível cobrar preços públicos pelo uso do espaço público (ruas e avenidas). A cobrança pode ser instituída por decreto do Poder Executivo. Trata-se de um valor cobrado pela prestação de um serviço de interesse público, o qual é oferecido por uma pessoa jurídica de direito privado. O preço público só é pago por quem efetivamente usa o serviço. É o caso, por exemplo, da cobrança de energia elétrica, água, transporte público coletivo e pedágio.
Fonte 2: Exploração de estacionamentos rotativos ou de longa duração ao longo das vias públicas
O estudo sugere que os estacionamentos rotativos "Zona Azul" podem ser uma forma de custear subsídios, mas dependerá do modelo utilizado pelo município. Se a cobrança
ocorrer diretamente pela Administração Pública, pode ser estabelecido por decreto do Poder Executivo, sem necessidade de lei.
Fonte 3: Custeio dos benefícios tarifários por meio dos orçamentos da União, dos Estados e dos Municípios
O estudo aponta que, para cobrir o déficit tarifário, uma das formas mais viáveis é a transferência direta de recursos pela União para os municípios. Porém, não há norma em âmbito federal ou constitucional que obrigue a União a prestar auxílio com fins de subsídio às tarifas de transporte público coletivo de passageiros, como ocorre, por exemplo, com as áreas da saúde e educação. Mas é preciso regulamentar o processo.
Fonte 4: Multas de trânsito
Atualmente, as normas referentes à aplicação de multas não preveem a destinação de recursos como subsídio para o transporte público coletivo. Por isso, é necessário uma articulação para alterar o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), especificamente o Artigo 320.
Fonte 5: Multas pelo transporte irregular de passageiros
Em algumas cidades, como no caso do Recife, as multas pelo transporte irregular de passageiros (previsto no Artigo 231 do CTB) podem chegar a quase R$ 4 mil. O estudo sugere que esses recursos sejam destinados ao subsídio do transporte público.
Fonte 6: Taxa sobre a exploração de estacionamentos privados de automóveis e outros polos geradores de tráfego e atividades com externalidades negativas
O estudo entende que a atividade de exploração de estacionamentos privados não implica no usufruto de bem ou serviço público, não cabendo, nesse caso, a instituição de taxas. Já nos serviços de valet existe o uso direto do espaço público (viário) para a prestação da atividade privada. Seria a lógica da contrapartida.
Fonte 7: Tarifa de congestionamento ou pedágio urbano em vias municipais
O estudo lembra que a Lei de Mobilidade Urbana (12.587/2012) permitiu que estados e municípios pudessem restringir e controlar a circulação de veículos motorizados em locais e horários predeterminados, além de cobrar um tributo ("pedágio urbano") dos motoristas pela entrada e pela saída nos referidos locais.
Mas destaca, ainda, que a iniciativa depende da administração pública de cada município e que deve ser feita mediante criação de lei.
Fonte 8: Contribuição do transporte público semelhante à contribuição de iluminação pública
O estudo diz que a Contribuição de Iluminação Pública (CIP) ou a Contribuição para o Custeio do Serviço de Iluminação Pública (Cosip) está estabelecida na Constituição Federal, sendo a taxa de iluminação pública permitida para custear esse serviço e cobrada na fatura de energia elétrica. Assim, desde que adequadamente instituída por Emenda Constitucional, nada impede que seja criado mecanismo similar em relação ao transporte público urbano.
SUBSÍDIO AO TRANSPORTE PÚBLICO AUMENTOU, MAS AINDA É POUCO
O Brasil está com aproximadamente 30% dos custos do transporte público coletivo urbano sendo subsidiados atualmente. O percentual representa um avanço e foi provocado pela pandemia de covid-19, que gerou uma perda de demanda superior a 85% em muitos sistemas do País.
Mas o Brasil, entretanto, segue atrasado quando se compara com os investimentos públicos realizados na Europa, referência mundial quando o recorte são os subsídios. Foi o que apontou o comparativo da NTU que analisou um conjunto de 67 sistemas de transporte brasileiros que adotam o subsídio tarifário aos passageiros e os comparou com a média dos subsídios praticados por uma amostra de 11 cidades de diferentes países europeus.
Segundo o estudo, entre 2020 e 2024 o Brasil teve um forte crescimento no número de cidades que subsidiam seus serviços de transporte público, chegando a 365 cidades. Desse total, 135 praticam a Tarifa Zero e 237 subsidiam parcialmente o transporte (sendo que sete oferecem subsídio e Tarifa Zero parcial, em dias específicos da semana ou linhas específicas).
Apesar do aumento, o número de cidades que subsidiam seus sistemas de transporte ainda é minoria no País. São apenas 13% do total de 2.703 municípios brasileiros que têm sistemas organizados de transporte coletivo urbano por ônibus. O restante continua custeando o serviço, basicamente, com receitas tarifárias, ou seja, com o valor da passagem paga pelo usuário.
CONHEÇA A PROPOSTA DO SUM - O SUS DA MOBILIDADE URBANA
A mobilidade urbana poderia ter uma espécie de SUS, idêntico ao da saúde pública. Há quase dez anos especialistas e estudiosos do setor tentam implantar no País o Sistema Único de Mobilidade Urbana (SUM),. A proposta seria uma fonte de financiamento nacional para custear o funcionamento das redes estruturadas de transporte público coletivo e, o que é mais importante, a obrigatoriedade de um teto mínimo de investimentos pelas três esferas de poder: federal, estadual e municipal.
O SUM é, sim, inspirado no SUS brasileiro e carrega a mesma lógica: toda a sociedade, usuária ou não da saúde pública, ajuda a financiar o seu custo. Ponto final. A mesma lógica, inclusive, usada no Brasil, para a educação e a segurança pública.
SUM TEM FOCO NA MOBILIDADE COLETIVA E O MAIS SUSTENTÁVEL POSSÍVEL
O SUM tem foco principal na mobilidade urbana sustentável e coletiva, priorizando o transporte público e a mobilidade ativa. E razões não faltam para embasar essa luta: embora os carros representem 52% da frota de veículos do País e as motos 28%, são os ônibus que transportam de 24% a 26% dos passageiros, representando apenas 1% da frota.
O financiamento seria alimentado por taxas, impostos, contribuições, outorgas e outras fontes de arrecadação. Com o SUM, a sociedade em geral passaria a contribuir para a implantação de uma rede de transporte público coletivo para a população, reduzindo o custo para o passageiro.
PONTOS-CHAVES:
- O estabelecimento de uma fonte nacional de recursos, administrada pelo governo federal
- Complementação financeira da União para custear as redes estruturadas de transporte público coletivo
- Obrigatoriedade de investimento mínimo por parte das três esferas de governo e
- Permissão legal para que estados e municípios criem fontes de financiamento para a mobilidade urbana.
O SUM, entretanto, tem que ser instituído por meio de uma PEC e de leis de regulamentação para o seu funcionamento como política pública, envolvendo as três esferas federativas. A PEC e sua regulamentação funcionariam como um ‘guarda-chuva’ para organizar as legislações que integram a Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU) - Lei 12.587/2012.
Uma PEC foi apresentada no Congresso Nacional, mas está parada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, sem qualquer previsão.