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Polícia diz que havia ‘black friday’ de armas de fogo em Pernambuco

Documentos apontam que pistolas e submetralhadoras desviadas da Polícia Civil eram comercializadas para facções criminosas, especializadas em tráfico de drogas e homicídios

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Raphael Guerra

Publicado em 13/09/2021 às 10:00 | Atualizado em 27/09/2021 às 22:07
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O desvio de ao menos 326 armas de fogo e de milhares de munições, identificado apenas em janeiro deste ano por um servidor mais atento, expôs a ausência de medidas de segurança na Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), vinculada à Polícia Civil de Pernambuco, na área central do Recife. Até hoje, o número exato de armas desviadas e o de resgatadas das mãos de criminosos é uma incógnita. Os investigadores também têm dúvidas de quando todo esse esquema começou na unidade policial responsável pela guarda dos armamentos da corporação. Mas, eles têm uma certeza: a ação era bem articulada, com funções distintas para cada envolvido e que resultava numa “Black Friday”, como classificou os delegados Cláudio Castro e Guilherme Caraciolo, em relatório enviado ao Ministério Público de Pernambuco (MPPE), cujo conteúdo está sendo publicado em primeira mão pela coluna Ronda JC

“O que podemos denotar é que ao longo de anos, em virtude da falta de controle e um software onde todo o acervo bélico da polícia pudesse ser relacionado, policiais que trabalhavam diretamente com o acervo, se aproveitaram da facilidade de acesso e falhas na segurança, e passaram a desviar armas, munições e acessórios, revendendo esse material de maneira indiscriminada para todo e qualquer tipo de criminoso, integrante ou não de organizações criminosas. Uma verdadeira ‘Black Friday’ de armas, munições e acessórios. Houve criminoso que comprou e houve criminoso que intermediou a venda, e assim os valores da comercialização foram sendo majorados e se disseminando a oferta e a procura”, descrevem os delegados em relatório.

Interceptações telefônicas apontaram que armas foram comercializadas para facções criminosas por valores que variavam de R$ 6,3 mil a 6,5 mil, cada uma. Já as submetralhadoras custavam R$ 22 mil nesse comércio ilegal. Integrantes ou pessoas ligadas a pelo menos duas organizações criminosas - incluindo detentos do Estado - foram identificados e fazem parte do rol de denunciados à Justiça.

ARTES JC
O comércio ilegal - ARTES JC

Até agora, 20 pessoas - incluindo cinco policiais civis - foram denunciadas pelo MPPE à Justiça por crimes como organização criminosa, comércio ilegal de armas de fogo, peculato, lavagem de dinheiro e corrupção ativa e passiva. Mas as investigações da Polícia Civil seguem e outros suspeitos podem vir a ser indiciados. Isso porque o trabalho de análise das armas de fogo recuperadas ainda não foi finalizado.

“Restou ainda identificado que as numerações das armas de fogo ou eram suprimidas ou modificadas, enquanto os brasões da instituição eram suprimidos, de maneira bastante habilidosa. Um levantamento minucioso está sendo realizado com o intuito de identificar quantas armas desviadas já foram recuperadas, principalmente através de método pericial mais rigoroso”, pontua o inquérito policial.

PRISÕES PREVENTIVAS

BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM
Operação Reverso da Polícia civil no GOE. - BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM

No pedido de prisão preventiva dos suspeitos de envolvimento no esquema, os delegados ainda reforçaram o perigo que eles representavam à sociedade, caso fossem mantidos soltos. Como mostra o trecho a seguir:

“O que até então restou apurado no curso da investigação, onde havia um grande desvio de armas, acessórios e munições da base da Core, sendo revendidos principalmente por policiais, com a participação de terceiros, se locupletando e “lavando” a renda obtida com a venda ilegal, municiando organizações criminosas, aumentando o poder de fogo de criminosos, criando um caos na sociedade. São indivíduos repugnantes e nocivos, que merecem reprimenda severa.”

Com a denúncia do MPPE recebida pela Justiça, agora os advogados dos acusados serão notificados para que apresentem as defesas prévias. A partir daí, audiências para ouvir testemunhas de acusação e defesa serão marcadas.

COMO AGIRAM OS POLICIAIS, SEGUNDO INQUÉRITO

1 - José Maria Sampaio Filho (comissário da Polícia Civil)

Foi reconhecido por uma testemunha por ter, em três momentos, “repassado grande quantidade de munição comercializada, que se destinou a uma facção criminosa. Numa operação da polícia, em agosto, para cumprir mandados de prisão contra os investigados, o policial foi flagrado na posse irregular de uma arma de fogo calibre 9mm sem registro.

2 - Cleido Graf Gonçalves Torreiro (comissário da Polícia Civil)

Apontado pelos investigadores como “o grande mentor/articulador” de todo o esquema de desvio de armas, munições e acessórios. Detinha acesso irrestrito à armaria da Core. “Sem qualquer justificativa, frequentava aos sábados e domingos a armaria. Manipulava planilhas com a inserção e supressão de dados. Utilizava intermediários na comercialização”, pontuou relatório da Polícia Civil ao MPPE. Ainda teria adquirido casa de veraneio e automóvel em nomes das filhas.

3 - Josemar Alves dos Santos (comissário da Polícia Civil)

Investigação apontou que ele auxiliava Cleidio no desvio das armas, munições e acessórios, manipulando as informações em planilhas no setor administrativo.

4 - Edson Pereira da Silva (comissário da Polícia Civil)

Segundo as investigações, “faltou com dever funcional realizando pesquisas no sistema integrado da Polícia Civil para integrantes da organização criminosa, justamente de um desafeto que eles estavam procurando para matar”.

5 - Carlos Fernandes Nascimento (agente administrativo da Polícia Civil)

“Fez contatos, intermediou, despachou e arrecadou dinheiro da venda de munições, armas e carregadores desviados da Core”, descreve o inquérito. Ele faleceu 17 dias após ser preso.

DEFESA DOS RÉUS

O advogado Diego Roberto Albuquerque, responsável pela defesa de Cleido Graf, apontado como o suposto mentor do esquema, informou à coluna que o policial civil tem mais de 30 anos na corporação. E que a inocência dele será provada. “Ele tem 70 anos, tem comorbidade e está no Cotel. Nem a segunda dose da vacina contra a covid-19, tomou ainda. Entramos com liminar, que foi negada na Justiça. Agora, vamos ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) para que ele responda ao processo em liberdade”, afirmou.

A advogada Aliadja Larissa Leão, responsável pela defesa de Carlos Fernandes Nascimento, pontuou que, no dia da prisão, em 12 de agosto, ele estava com o quadro de saúde delicado. Segundo ela, houve pedidos de prisão domiciliar, porém, após 17 dias no Cotel, ele faleceu. “Estou peticionando o pedido da extinção da punibilidade”, disse a defesa.

A coluna não conseguiu contato com as defesas dos outros acusados, mas o espaço segue aberto.

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