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Coronavírus: "Não sou catastrófica, mas acredito que o mundo vai sofrer muito", diz pesquisadora

Em entrevista à titular desta coluna, a médica sanitarista Tereza Lyra destaca que a pandemia do novo coronavírus deixará marcas profundas na sociedade

Cinthya Leite
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Cinthya Leite
Publicado em 30/03/2020 às 23:35 | Atualizado em 30/03/2020 às 23:45
ASCOM/FIOCRUZ PE
"Claro que vamos ter muitos casos e óbitos entre a população de classe média, como vemos agora. Mas a grande concentração virá mesmo da periferia", diz Tereza Lyra - FOTO: ASCOM/FIOCRUZ PE

A médica sanitarista Tereza Lyra, 61 anos, pesquisadora da Fiocruz Pernambuco, já trabalhou no combate a várias epidemias e sempre lança um olhar para os impactos sociais atrelados ao binômio saúde/doença. Para ela, a pandemia do novo coronavírus deixará marcas profundas na sociedade, especialmente por causa de um fenômeno que se torna visível sempre que surgem novos agentes infecciosos: o adoecimento da população que se concentra em locais com falta de saneamento básico e de acesso ao serviço de saúde de forma permanente. “Claro que vamos ter muitos casos e óbitos entre a população de classe média, como vemos agora. Mas a grande concentração virá mesmo da periferia”, diz Tereza, nesta entrevista à jornalista Cinthya Leite.

JC – Como pesquisadora que volta o olhar para as políticas públicas de saúde, como tem analisado os desdobramentos desta pandemia?

TEREZA LYRA - Sempre que há uma nova doença ou epidemia, assume-se geralmente o discurso de que são problemas de saúde democráticos. Quantas vezes já não ouvimos dizer que o Aedes aegypti é um mosquito democrático? As nossas experiências, diante do enfrentamento a grandes epidemias, mostram que essa democracia é relativa. Por exemplo, se usarmos o exemplo da epidemia mais recente, a da zika, que teve Pernambuco como epicentro, percebemos, com base em trabalhos publicados, que, seis meses após o início do surto, nenhum caso aconteceu em bairros centrais do Recife como Graças, Jaqueira, Casa Forte, Aflitos. São áreas em que hegemonicamente vive parte da classe média alta. E onde se concentraram os casos de zika? Em locais onde se predominam outros agravos decorrentes da falta de saneamento básico e de acesso ao serviço de saúde de forma permanente. Então, provavelmente, essa será a evolução da covid-19. Claro que vamos ter muitos casos e óbitos entre a população de classe média, mas a grande concentração virá da periferia. Por quê? Porque a gente vive em grandes centros urbanisticamente anárquicos, onde a periferia está em locais com menos condições de vida.

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JC – É um desafio pensar em isolamento social nessas condições?

TEREZA LYRA – Uma coisa é fazer isolamento social num apartamento aerado, com duas ou três pessoas. Mas se formos para os altos e os córregos, com densidade habitacional enorme, como se fazer esse isolamento em 30 metros quadrados, onde moram cinco ou seis pessoas? É claro que, nessas áreas, em determinado momento, teremos problemas muito graves. Somam-se a isso outras questões importantíssimas, que merecem ser discutidas. Entre elas, está esse neoliberalismo destrutivo, que o mundo adotou como política, em que um ente abstrato chamado mercado infringe todas as regras do jogo. Claro que isso agrava o mundo todo. As redes de saúde europeias que eram calcadas no bem-estar social, a partir do momento em que assumiram políticas neoliberais, foram esvaziadas. Elas estão com dificuldade de suprir a si próprios. Houve uma desindustrialização. Os Estados Unidos, o país mais rico do mundo, está com dificuldades de adquirir máscara... Então, esse neoliberalismo ferrenho, é um problema. O governo dá suporte a quem já tem e geralmente abandona quem não. Por isso, a pandemia do novo coronavírus é agravada também por essa questão.

JC – Como vê o Sistema Único de Saúde (SUS) neste cenário?

TEREZA LYRA – Ele vem sendo atacado e convive com o subfinanciamento desde sempre. A gente nunca viveu o SUS que desejava. Normativamente ele é um sistema extremamente bem desenhado, e a gente percebia avanços. Nos últimos anos, contudo, assistimos ao fim do Programa Mais Médicos. São profissionais que teriam uma capilaridade enorme, neste momento, para ações localizadas de controle, educação em saúde, identificação precoce de casos, bloqueio de casos suspeitos e contaminados, principalmente em áreas mais vulneráveis. Em segundo lugar, há o desmonte da rede hospitalar pública, que tem sido sucateada principalmente por falta de recursos. Uma rede hospitalar é cara. A gente não pode negar o esforço que o Estado de Pernambuco e município do Recife têm feito para criar novos leitos de UTI (unidade de terapia intensiva). Mas isso não é tão simples: leitos de UTI exigem profissional altamente qualificado. São cuidados complexos, que exigem equipe de enfermagem qualificada e ainda fisioterapia respiratória.

JC – É uma realidade também muito delicada e dura para os profissionais de saúde...

TEREZA LYRA – Se olharmos os plantões, nas unidades hospitalares, percebemos que muitos estão desfalcados porque os profissionais estão infectados. Uma boa parte da transmissão (do novo coronavírus) se dá com o paciente assintomático. Veja só o cenário: um profissional atende, numa emergência, um paciente cardíaco, sem sintomas de covid-19, mas que está infectado. Ou o contrário: o médico é assintomático e pode transmitir a doença. Esse é um problema com o qual vamos lidar numa dimensão como nunca antes.

JC – Passada esta fase, será que viveremos com o novo coronavírus da mesma forma com que passamos a conviver com a circulação dos vírus da gripe?

TEREZA LYRA – Acredito que essa é a tendência baseada na experiência com vírus que vão surgindo. Numa epidemia como a atual, o novo coronavírus encontrou a humanidade susceptível. Antes de pandemia acontecer, ninguém havia tido covid-19. Então, todos somos susceptíveis; a gente tem imunidade zero. E estamos falando de um vírus que têm RNA como material genético. Ou seja, o coronavírus tem uma capacidade de mutação muito rápida. O vírus que começou em Wuhan, na China, já não é o mesmo dos Estados Unidos. Vírus como este vão se adaptando também ao perfil populacional, ao perfil etário e ao clima. Provavelmente o que vai acontecer é que, neste ano e no próximo, o mundo ainda tenha grandes picos de epidemia do novo coronavírus e depois surtos momentâneos, como acontece com a gripe sazonal, que faz os países esperarem anualmente um aumento de casos, mas nada na dimensão atual.

JC – A situação de enfrentamento à covid-19 se torna mais complexa para o Brasil porque, já antes da pandemia, o País já estava em condições socioeconômicas fragilizadas?

TEREZA LYRA – Tivemos recentemente reformas de políticas públicas cruciais, como a da previdência e a dos vínculos trabalhistas. Estamos diante de uma massa que não tem segurança de vínculo trabalhista. A sociedade foi sendo pulverizada, e essas pessoas estão praticamente em desespero porque a fonte de renda delas era diária. Elas ganhavam diariamente o que iriam comer naquele dia. Então, essa quebra dos direitos sociais vai ter uma repercussão terrível. Não é à toa que as pessoas que se contrapõem ao isolamento social estão usando isso como arma.

JC – Consegue ser otimista diante que tudo a que assistimos?

TEREZA LYRA – Não, até porque, ao longo de um século, esta é a primeira pandemia que paralisa o mundo por completo, o que já é motivo de grande inquietação. E mais: estamos numa situação de vulnerabilidade política como o Brasil nunca viveu. A gente assistiu ao presidente (Jair Bolsonaro) conclamando as pessoas a voltarem para rua! Como pode? A gente vive numa sociedade estruturalmente racista, excludente, que tem dificuldade em compreender que a sociedade igualitária é benéfica para todos. Não sou uma pessoa catastrófica: o mundo não vai acabar por causa do novo coronavírus, mas vai sofrer muito. É uma oportunidade que a sociedade mundial tem de repensar. A grande lição que esta pandemia vai mostrar é que os governos precisam ser fortes nos sistemas de proteção social e de políticas públicas de saúde.

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