CONTRA PL DO ABORTO

"Estupro é algo terrível, e o projeto contra aborto é uma aberração", diz obstetra Olímpio Moraes

Por toda a trajetória na medicina, o obstetra não poderia ter posição diferente: defende o aborto legal, tema que volta ao centro do debate nacional

Publicado em 18/06/2024 às 22:01 | Atualizado em 21/06/2024 às 11:30
Entrevista

Referência na luta pela democratização do aborto legal no Brasil, o obstetra recifense Olímpio Moraes, 62 anos, é a favor da saúde pública e dos direitos das mulheres. Por toda a trajetória humana percorrida na medicina, que contou com uma co-orientação de uma socióloga que o deu uma visão holística nos tempos de mestrado, o médico não poderia ter uma posição diferente: ele defende o aborto legal, um tema que volta ao centro do debate nacional com o Projeto de Lei 1904, em discussão no Congresso Nacional.

A proposta equipara a interrupção da gravidez, após 22 semanas de gestação, ao crime de homicídio. Para definir o PL, Olímpio só precisa de uma palavra: "Aberração".

O tema, que tem gerado reações da população, leva Olímpio a refletir e a fazer críticas a vários setores da sociedade, inclusive à categoria médica. Nesta entrevista à jornalista Cinthya Leite, titular desta coluna Saúde e Bem-Estar, o obstetra, que já foi excomungado da Igreja Católica, após realizar um aborto em uma menina de 9 anos, acentua: "O CFM (Conselho Federal de Medicina) deixou de ser uma entidade de proteção à sociedade", ao se referir ao fato de a autarquia vetar o aborto e ressaltar que há limites para autonomia da mulher. 

JC - Por toda a sua trajetória na medicina e por milhares de vida que o senhor já salvou, qual o seu sentimento ao ver esse projeto? 

OLÍMPIO MORAES - Não tem como ver diferente: é uma aberração. Falta vontade política de considerar que salvar a vida das mulheres é importante. Matam-se as mulheres por questões ideológicas. Matar mulher faz parte do cotidiano de objetivos políticos. É sempre para condenar mulheres. Esse problema de aborto vem de uma lei de 1940, foi Getúlio Vargas que fez, um homem (naquela época, o presidente assinou decreto-lei com o Código Penal em vigor até hoje. O regramento considera o aborto legal sempre que houver risco para vida da gestante ou em todos os casos de gravidez resultante de estupro). Ele fez porque existia a teoria da eugenia e, assim, via como perigoso para a sociedade passar os genes da maldade que o estuprador carregava. Depois, o motivo principal era pelo fato de, naquela época, a mulher ser proprietária do homem - e era vergonhoso, para eles, terem, na sociedade, um filho ilegítimo, um filho de uma menina que engravidou sem a permissão do seu dono. Era vergonhoso para a família tradicional cristã brasileira. Por isso, ninguém ficou contra esses políticos.


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JC - E quando essa ideia mudou?

OLÍMPIO MORAES - Na Constituição de 1988, quando o Sistema Único de Saúde (SUS) foi instituído, tinha-se o abortamento como um direito na lei. Nesse ponto, algo se destacou: a mulher que decide (passar ou não pelo aborto), pois a mulher é dona do corpo. Foi aí que as Igrejas ficaram revoltadas. Não é sobre o embrião que está se discutindo. É sobre o corpo da mulher, é autonomia, é a reprodução, mas é o poder que a mulher tem sobre a reprodução, que foge do homem. Isso incomoda as pessoas da Igreja, incomoda parte da sociedade. Por isso que eles querem matar. Veja só: inaugurado em 1989, durante a gestão da prefeita Luiza Erundina, foi criado o primeiro serviço do aborto legal no Hospital Jabaquara (Zona Sul de São Paulo). Foi fechado em 2017, na gestão de João Dória. Digo sempre: sabemos como evitar a morte materna, está tudo escrito. Falta vontade política de considerar que salvar a vida das mulheres (grávidas por estupro ou por outras causas) é importante. 


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JC - A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) declara inconstitucional o projeto de lei que equipara o aborto realizado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples. E essa é visão é bem clara na sua fala, Dr. Olímpio, especialmente quando o senhor demonstra segurança ao mencionar os protocolos sobre aborto legal. Isso vem do início da sua formação médica? 

OLÍMPIO MORAES - Na década de 1980, me incomodava muito a questão do aborto, porque todos os dias enterrava-se uma menina (que não teve acesso ao aborto legal). Me incomodava também a maneira como os médicos tratavam as mulheres que abortavam, como se fosse uma maneira de punir. Deixavam elas para serem atendidas por último para passar mais fome e aprender a não abortar novamente. Eu peguei transformações da época de estudante da residência, com a queda da mortalidade materna por abortamento, que não foi uma atitude de governo; não foi uma ação política do governo. Então, foram as mulheres que descobriram uma medicação cujo efeito colateral era o aborto. Não foi não foi a academia; não foram os pesquisadores. Foi a mulher brasileira, entre a década de 1980 e 1990. Quando as autoridades perceberam isso, que as mulheres deixaram de morrer, ficaram preocupadas, ao invés de comemorarem. Por que as mulheres deixaram de morrer? Porque estavam tomando remédio de aborto. E a medicação foi retirada do mercado. Fizemos uma pesquisa para, pelo menos, termos o medicamento no hospital, pois estávamos salvando vidas. Foi tema da minha tese de doutorado. Continuamos a salvar as mulheres, a não sermos tão perverso. 


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JC - E essa medicação, no Brasil, é alvo de ataques, mas defendida pela Organização Mundial de Saúde (OMS)...

OLÍMPIO MORAES - Essa medicação é de livre acesso no mundo. A Organização Mundial de Saúde (OMS) distribui essa medicação nas aldeias para salvar a vida das mulheres que sangram. Uma outra opção é melhor, mas tem que ter seringa, tem que se guardar em refrigeração. Na Amazônia, não tem isso. Então, se a gente tivesse a medicação oral sem dificuldade para os profissionais poderem usar, conhecendo contraindicações, salvaríamos muitas vidas e conseguiríamos caminhar para o objetivo de diminuir a morte materna.

JC - Qual o seu sentimento diante da postura do Conselho Federal de Medicina (CFM) sobre o aborto? 

OLÍMPIO MORAES - O CFM deixou de ser uma entidade de proteção à sociedade. E foi criada para isto: para proteger a sociedade e a medicina. Só que deixaram de lado a missão. Hoje é uma entidade pelega, do negacionismo, da extrema direita. Eles trabalham, são quase funcionários (do negacionismo), tanto é assim que uma pessoa, um conselheiro, foi para o Ministério da Saúde fazer as politicas das mulheres, né? Quer dizer, há um coloio ali contra os direitos humanos, contra os direitos da mulher, contra a ciência.


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JC - Até mesmo a OMS pede acesso ao aborto legal para salvar mulheres e não aconselha limite gestacional para realização do procedimento... É um retrocesso o Brasil caminhar diferente? 

OLÍMPIO MORAES - Sem dúvidas. O estupro é uma coisa terrível, causa sequelas de todos os tipos, psicológicas, disfunções sexuais. A mulher pode ficar com vaginismo. E é cruel porque, em muitos casos, as meninas conhecem o estuprador. São pessoas que deviam protegê-las, são pessoas próximas a elas, são pessoas em quem elas teoricamente confiam, né? É muito difícil para uma criança isso; é muito confuso. A criança não tem noção do que está acontecendo com ela e, quando acontece, ela nem sabe muitas vezes o que é gravidez. E como essa pessoa é muito próxima a ela, falta ajuda. Na verdade, o estuprador ver a barriga crescer e pede para ela não contar a ninguém. "Esconde isso aí, viu?", eles dizem. A criança passa a usar roupa frouxa, deixa de estudar, perde peso, não consegue comer e levar a gravidez ao máximo possível. Há vezes em que o parto é feito; em outras vezes, a criança que carregou o feto morre. Em outros casos, ela está numa depressão tão profunda que toma veneno. Chega ao hospital de grande porte, e só descobrem que ela estava grávida no Serviço de Verificação de Óbito (SVO). A primeira causa morte materna, entre esse grupo, são as complicações da gravidez. O corpo de criança não está preparado. Ela pode ter pré-eclâmpsia (hipertensão na gravidez), pode ter hemorragia... A segunda causa é o suicídio pelo sofrimento decorrente da violência sexual.


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JC - É um cenário mais comum do que imaginamos? 

OLÍMPIO MORAES - A menina jovem não morre de hipertensão, não morre de infarto; ela não morre de câncer. Ela morre por causa dos homens, por causa da sociedade, por causa dos políticos. É evitável isso.
Ninguém é a favor do aborto, ninguém quer aborto. O sonho de um médico é que todas engravidem felizes, desejando a gestação. O meu sonho é que toda mulher que engravide comemore. Eu não quero que a gravidez seja penação para mulher. É interessante que essas pessoas, que fazem essas leis restritivas para prender as mulheres, são contra todas as medidas efetivas para que a gravidez não aconteça e a violência também não. Eles são contra a educação sexual, que chama de ideologia de gênero, dizendo que só a família pode ensinar sobre sexo. Eles são contra método contraceptivo porque dizem que vai estimular a contracepção. São a favor de abstinência sexual, que não funciona em canto nenhum do mundo. Aí, quando as meninas engravidam ou são estupradas, eles negam informação, negam acesso. Mandam a menina fazer o pré-natal para, quando descobrir, tiver com 22, 23 semanas, para dizer que alguém vai matar o feto.


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JC - É uma visão de que a errada é sempre a mulher... 

OLÍMPIO MORAES - É isso. Mas nenhuma menina estuprada, nenhuma mulher estuprada, chega a cinco meses de gravidez querendo. Ela chega a isso porque tiraram seus direitos, não deram informação. Ela sofreu estupro. E sofreu estupro de profissionais de saúde também, violência por profissionais de saúde em sequência, de políticos, porque no interior onde vive não tem serviço. Apenas 3,6% dos municípios no Brasil têm serviço de abortamento previsto em lei. Quem está preocupado com isso, de não ultrapassar 22 semanas de gestão, deveria estar cobrando dos políticos maternidades de atendimento à violência sexual, que tenham atendimento de abortamento legal. Mas eles fazem o contrário: a primeira coisa que fazem, como aconteceu em São Paulo, é fechar os serviços, é processar os médicos. Então, é uma hipocrisia, é uma mentira sem precedentes, é gente muito ruim.


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JC - Nos grupos de WhatsApp, muitas pessoas contra o aborto têm disseminado mensagens com o argumento de que só Deus pode tirar uma vida. O que diria a essas pessoas?

OLÍMPIO MORAES - Independentemente da religião, quando tem uma pessoa estuprada na família, cai a ficha. E os parentes percebem como é um ato violento e mudam de ideia. Mas tem vezes que o ser humano é muito egoísta: eles nos procuram, fazemos o procedimento e, depois de algum tempo, continua falando a mesma coisa (contra aborto). Ou seja, a família resolveu o seu problema, mas quer ficar de bem com a comunidade. Então, fazem o teatrinho.


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JC - Em 2020, o senhor realizou, no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), o aborto legal em uma menina de 10 anos, do Espírito Santo, que estava grávida após ser estuprada pelo tio. De lá para cá, houve mais retrocessos ou avanços em relação aos direitos das mulheres? 

OLÍMPIO MORAES - Eu acho que a sociedade civil está percebendo o movimento que acontece. Temos o Ministério Público, onde há muitas mulheres. E outra coisa também: a medicina está cada vez mais feminina. Porque não é contra religião. Se você é católico, se você for estuprada sendo católica, você tem um direito de preservar a gravidez. Vou dizer além: se você tem uma doença cardíaca, o médico diz: "olha, você tem uma doença. Essa essa gravidez é alto risco, você tem um risco de 50% de morrer". O que vamos fazer como médico? Eu aconselho a fazer o aborto. "Doutor, não vou fazer porque a minha religião não permite". O médico não vai pegar a mulher, internar e fazer o aborto. Ele vai respeitar a decisão dela, vai fazer o pré-natal e vai tentar salvar a vida, fazer seu desejo respeitando a sua autonomia. Criminalizar o aborto é contra o princípio médico de bioética. Quando se torna crime, até a relação médico-paciente é prejudicada, porque a mulher deixa de contar a verdade com medo de ser considerada criminosa. Há uma ideia, na cabeça das pessoas, de que a mulher gosta de abordar. Ninguém quer abortar. Ela quer ter ajuda para não abortar. Quando se trata o problema à luz da ciência, diminuem os casos de aborto, porque essas mulheres são descobertas e é oferecida ajuda a não abortar mais, com o método contraceptivo, com a educação.

“A matéria apresentada neste portal tem caráter informativo e não deve ser considerada como aconselhamento médico. Para obter informações fornecidas sobre qualquer condição médica, tratamento ou preocupação de saúde, é essencial consultar um médico especializado.”

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