Suspense

Filme 'A Casa', da Netflix, não consegue ir além dos clichês

Longa espanhol dirigido pelos irmãos David e Àlex Pastor não consegue criar tensão

Márcio Bastos
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Márcio Bastos
Publicado em 22/04/2020 às 10:50 | Atualizado em 22/04/2020 às 10:50
QUIM VIVES/Divulgação
Embates criados pela chegada de Javier ao núcleo familiar são previsíveis - FOTO: QUIM VIVES/Divulgação

A Espanha conseguiu, como poucos países, elaborar uma fórmula de sucesso para produções pensadas exclusivamente para a Netflix. De séries como La Casa de Papel, As Telefonistas, Elite e Toy Boy a filmes como O Poço, a nação europeia tem emplacado obras que chegam sem muito alarde, mas acabam conquistando o público, em particular o brasileiro. O mais recente exemplo desse fenômeno é o filme A Casa, atualmente uma das produções mais populares na plataforma de streaming.

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Ainda que os exemplos citados no início deste texto pertençam a gêneros distintos, eles têm em comum a repetição temática e de fórmula de outros trabalhos da televisão e do cinema. Ao invés de buscarem narrativas originais, se ancoram em obras bem-sucedidos, adicionando tons novelescos. La Casa de Papel, por exemplo, ecoa O Plano Perfeito (2006), de Spike Lee, e outros tantos filmes de assaltos mirabolantes e aparentemente impossíveis.

Com A Casa não é diferente: os irmãos David e Àlex Pastor, que dirigem e assinam o roteiro, se inspiram na história já amplamente explorada do antagonista que se introduz no seio de uma família aparentemente feliz, mas com disfuncionalidades, na tentativa de destruir e usurpar aquela dinâmica. Um clássico do gênero é A Mão Que Balança o Berço (1992), de Curtis Hanson. Não é preciso nem ir tão longe: Avenida Brasil, um dos maiores sucessos da teledramaturgia brasileira, é construída sob a mesma base.

No filme espanhol, o publicitário Javier Muñoz, interpretado por Javier Gutierrez, está há um ano procurando emprego, após ser dispensado pela prestigiada agência na qual atuou por décadas. Seu trabalho mais conhecido é um comercial no qual uma família unida e perfeita compartilha bons momentos em uma luxuosa casa. “A vida que você merece”, diz o slogan. Apesar do sucesso na época, o trabalho de Javier é considerado antiquado pelos jovens que o entrevistam.

Após inúmeras tentativas por uma vaga e várias humilhações, ele, sua mulher e o filho adolescente se mudam do apartamento confortável, em um bairro elegante, para um edifício pequeno e lúgubre na periferia de Barcelona. Apesar da disposição da esposa (Ruth Díaz) e do jovem em se adaptarem à nova vida, Javier, por outro lado, é se recusa a aceitar a realidade. E, quando a resistência em aceitar seu novo status social se torna doentia, ele passa a espionar a vida da família que ocupou seu antigo imóvel.

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Em uma descida rápida à obsessão, ele traça estratégias para se aproximar do casal Tomás (Mario Casas) e Lara (Bruna Cusí), que tenta superar os traumas causados pelo vício em álcool dele. Sem qualquer preocupação em dar mais profundidade aos personagens, o roteiro recorre a situações clichês e que não criam o suspense necessário para que o espectador se importe com os envolvidos.

Quando esboça caminhos que podem gerar conflitos mais substanciais, como a entrada em cena de um personagem capaz de arruinar o plano de Javier ou as tensões entre ele e sua esposa, o roteiro se apressa para solucionar essas arestas e chegar ao final manjado. Talvez ainda mais problemática seja a falta de ambição artística, uma resignação em oferecer um produto requentado e facilmente esquecível. Os diretores querer fazer crer que há algum tipo de substância no filme, mas não imprimem qualquer tipo de autoralidade nem se permitem explorar temas que poderiam gerar discussões importantes.

Clichês

A Casa reforça, inconscientemente, a narrativa do homem branco, heterossexual e cis forçado pela sociedade a cometer atrocidades uma vez que tem, pela primeira vez, seus privilégios negados. Javier não aceita ter menos do que o sonho que mundo sempre lhe prometeu - e que ele, como publicitário, ajudou a reforçar. Para conquistar essa posição que é dada como um direito, ele é capaz de tudo.

Se o filme optasse por trabalhar de forma crítica esse lado macabro do capitalismo e da sociedade heteronormativa e “meritocrática”, a exemplo do O Corte (2005), de Costa-Gavras, poderia alcançar resultados interessantes. No final, o que entregaram foi mais um longa que deve conquistar algumas milhões de visualizações para, em poucos meses, ser relegado aos porões da Netflix.

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