A cultura foi um dos primeiros setores afetados pela crise gerada pelo novo coronavírus e a instituição do isolamento social para conter o avanço da covid-19. As artes cênicas, em especial, ancoradas na presença física do público, foram duramente atingidas com o fechamento dos equipamentos culturais e é esperado que sua recuperação seja uma das mais lentas, mesmo após o controle da pandemia. Nesse cenário, festivais de teatro de todo o país tentam encontrar soluções para manter suas atividades, fomentar a área, dar suporte aos artistas e entreter o público.
Um dos maiores eventos de artes cênicas da América Latina, o Festival de Curitiba daria início à sua 29ª edição em 24 de março, mas precisou adiar suas atividades com a eclosão da epidemia no Brasil. Para contornar a situação e não deixar de acontecer em 2020, a produção anunciou uma série de mudanças para a maratona cênica deste ano, que acontecerá entre os dias 17 e 27 de setembro.
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Entre essas ações estão uma programação composta exclusivamente por artistas da cidade, com exceção do rapper Emicida, que fará o show de abertura; e a execução de atividades em 12 espaços abertos, respeitando as normas de distanciamento social.
"Em um primeiro momento, a gente achou que poderia replicar a programação (original) em setembro, que foi o que a gente anunciou, mas com o passar do tempo, fomos percebendo que as coisas eram mais difíceis do que parecia no começo", explicou Leandro Knopfholz, criador do festival. "Observando a situação, nos pareceu natural que, em um momento em que está todo mundo consumindo do comércio local, que a gente também apoiasse a produção artística local com os recursos que a gente ainda tinha."
Leandro pontua ainda que, mesmo que os protocolos de segurança sanitária permitam a abertura de salas de teatro e cinema, ainda vai demorar algum tempo até que as pessoas se sintam seguras para consumir obras nestes locais. Por isso, a ocupação da rua e a valorização da cidade também se apresentam como soluções possíveis. Ele reforça ainda que os patrocinadores do evento foram sensíveis a esta mudança e mantiveram seu apoio ao festival.
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Mudanças na forma de realização também já foram anunciadas pelo Festival de Artes Cênicas de Bauru (SP). Inicialmente programado para setembro, foi transferido para novembro e manterá os dois trabalhos internacionais de sua grade, porém, agora, estes serão transmitidos virtualmente. Além das montagens, os artistas também participarão, por vídeo, de um bate-papo ao vivo e ministrarão videoaulas sobre seus processos de criação. Os espetáculos e oficinas nacionais devem ocorrer de forma presencial e a organização ainda estuda a melhor maneira de garantir a segurança dos artistas e da plateia.
"Uma das coisas que a pandemia nos mostrou é que é difícil se pensar em 'formas definitivas', independente de qual seja a área discutida. Neste momento estamos vivenciando adequações drásticas há pouco inimagináveis, seja no campo dos formatos, dos hábitos ou nas formas de se consumir cultura", enfatiza Andressa Francelino, diretora-geral do evento. "A arte nasce do compartilhamento de experiências e do desbravamento de novas alternativas, então neste primeiro momento teremos que nos adaptar e nos fortalecer a partir das possibilidades locais, fomentar os coletivos e ações dos grupos residentes é uma preocupação constante, mas a sede por trocas com grupos de outras cidades, estados ou países permanecerá."
Cena local
Em Pernambuco, o Trema Festival de Teatro tinha previsão de retomar suas atividades em agosto (a iniciativa não foi realizada em 2019, por falta de verbas), mas devido à pandemia, está com o cronograma em suspenso. Segundo Pedro Vilela, curador do evento, havia negociações avançadas com espetáculos, principalmente com os internacionais, que exigem uma articulação prévia maior, mas que as incertezas em relação a reabertura de fronteiras e teatros e à liberação de incentivos.
"Os festivais são uma importante plataforma para o retorno dessas atividades, para que os artistas possam voltar a desenvolver seus ofícios, a ter a possibilidade de vender suas obras. Mas, o momento, para nós, ainda é muito obscuro quanto às possibilidades", pontua.
Como apontado por Vilela, os festivais são uma importante ferramenta de circulação de obras, ajudando a suprir uma defasagem na distribuição dos produtos culturais no Brasil; possibilitam também o intercâmbio entre artistas, a formação cultural e de público, com realização de oficinas, e o fomento da cadeia produtiva no setor. Nos últimos anos, a escassez de verbas e investimento já comprometiam a realização de muitos desses eventos, como o próprio Trema.
O curador percebe como tendências para os festivais a transferência das ações para o campo do virtual, o foco na cena local e nacional, e a ocupação do espaço público, em consonância com o que já vem sendo realizado na Europa e, como nos casos de Curitiba e de Bauru.
Paulo de Castro, produtor do Janeiro de Grandes Espetáculos, evento cuja maior parte da programação acontece dentro de teatros, diz que apesar de conversas já estarem em andamento para tentar entender como proceder diante das transformações pelas quais o mundo passa, ainda é difícil prever como será a edição do próximo ano.
Danielle Hoover, produtora do Festival de Circo do Brasil, que acontece em novembro e é conhecido por trazer ao Recife trabalhos de diferentes países, também pontua que está esperando o desenrolar dos fatos para entender como realizar o festival, devido às incertezas em relação à pandemia e à crise política.
"É impossível fazer o Festival de Circo só com espetáculos locais, mas é possível realizá-lo só com obras nacionais", conta, adiantando que esta edição deve ter uma temática ligada focada nas questões de gênero, com foco em trabalhos de mulheres, e antirrascista.
NOVO NORMAL
A falta de perspectiva em relação ao futuro das artes cênicas não é um problema exclusivo do Brasil. Mesmo nos países que lidaram de forma efetiva com o coronavírus e já começam a erradicar a pandemia, os protocolos de segurança sanitária para o tão comentado "novo normal" ainda devem passar por uma série de testes e adaptações. Entre as ações já ventiladas está a organização de novos mapas de assentos, garantindo maior distanciamento entre os espectadores.
Espaços alternativos estão entre os que devem sofrer danos maiores, já que a maioria depende da realização frequente de atividades e da renda de bilheteria para garantir sua manutenção. Um artigo recente do britânico The Guardian aponta que alguns infectologistas preveem a reabertura completa de espaços como teatros e cinemas apenas no final de 2021.
Nesse intervalo de tempo, como apontam as iniciativas já anunciadas pelos festivais e também ações empreendidas de formas individuais por vários grupos, o ambiente virtual deve ganhar proeminência nas artes cênicas e é provável que a fusão de linguagens deva ser uma tendência para além do período da pandemia.
"Este será mais um momento de elevar a estética, o movimento, a contradição e o manifesto. A arte sempre estará atenta às mudanças sociais e refletindo sobre elas. Seguimos batalhando e nos engajando na busca por auxílios governamentais neste momento de emergência e buscando construir ações dentro das nossas possibilidades locais, como financiamentos colaborativos e parcerias privadas. Mas cada vez mais enxergamos no trabalho coletivo a melhor forma de fortalecer a classe e enfrentar estas dificuldades", reforça Andressa Francelino.
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