LITERATURA

Fernanda Diamant deixa curadoria da Flip: "Uma mulher negra é a renovação que o evento precisa"

Jornalista assumiu a curadoria do evento em agosto de 2018 e anunciou seu desligamento da Flip por meio de uma nota através da qual explica sua decisão

Valentine Herold
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Valentine Herold
Publicado em 13/08/2020 às 16:14 | Atualizado em 13/08/2020 às 16:25
NINO ANDRES/ DIVULGAÇÃO
Fernanda Diamant, ex-curadora da Flip - FOTO: NINO ANDRES/ DIVULGAÇÃO

Após dois anos no cargo de curadora da Festa Literária de Paraty (Flip), a jornalista Fernanda Diamant anunciou na noite desta quarta-feira (12) que se desligou da função. Em nota enviada ao jornal O Globo, ela lembra de fatos importantes de sua trajetória e elenca a principal razão pela qual tomou a decisão. Segundo Fernanda, é tempo de uma mulher negra assumir o comando da curadoria do evento literário para trazer mais representatividade e renovação à programação.

"Esses dias mais intensos de levante antirracista me fizeram entender que precisamos lutar mais ativamente, agir da forma mais contundente possível. Mais que uma programação com autoras e autores negros, a Flip agora precisa de uma curadora negra para reinventá-la nesse mundo pós pandemia. Uma mulher negra, na minha opinião, é a renovação que o evento mais importante da literatura do país precisa", escreveu.

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A Flip deste ano deveria ter ocorrido no último mês de julho mas, devido às medidas necessárias para contar o avanço da pandemia do Coronavírus, foi adiado para novembro (ainda sem dias definidos). Na nota, Fernanda reforça que não concordou com o reagendamento do evento e que as  situação sanitária do Brasil deveria ser o foco.

"A pandemia se agravou, a condução genocida que o governo federal fez da crise sanitária deixou tudo muito sombrio. Cada vez mais me parecia que a celebração desenhada previamente pertencia a uma outra época e tinha perdido sentido. Não havia nada a ser comemorado. Ainda não há. Era preciso repensar a curadoria e até mesmo o próprio evento — virtual ou não — à luz dos acontecimentos", justificou.

A ex-curadora comenta ainda sua primeira edição à frente da Flip, em 2019, com Euclides da Cunha como homenageado, e a escolha deste ano, a poeta Elizabeth Bishop. O anúncio da autora norte-americana foi polêmica não apenas por se tratar da primeira estrangeira a ser homenageada pela Flip, mas também pela sua postura positiva em relação ao Golpe Militar de 1964.  Na nota, Fernanda explica a escolha focando no fato de Bishop ter tido uma ligação muito estreita com o Brasil tanto por ter morado aqui quanto por ter sido casada com uma brasileira, assim como a representatividade de ter sido uma poeta queer.

Confira a nota na íntegra:

"A Flip é um dos oásis culturais do Brasil. A Festa, cada vez menos elitista em decorrência do aumento das chamadas casas parceiras, concentra discussão de ideias, apoio à leitura e aos livros, divulgação e revelação de autores, encontro entre pessoas, liberdade de expressão, celebração. Desde a curadoria de Josélia Aguiar, o programa principal também passou a ser mais diverso. Há ainda a biblioteca comunitária mantida pela Flip que funciona o ano todo na Ilha das Cobras — uma das áreas mais vulneráveis da cidade de Paraty —, agora ameaçada por falta de recursos.

Em agosto de 2018, aceitei o convite para ser a curadora da Festa da Literatura Internacional de Paraty de 2019. Euclides da Cunha, o autor homenageado, foi uma escolha de comum acordo entre curadoria e direção artística. Dos cinco autores mais vendidos em Paraty em 2019, quatro são autores negros e um indígena — Grada Kilomba, Ayobami Adebayo, Kalaf Epalanga, Gael Faye e Ailton Krenak. Foi a primeira vez que isso aconteceu. A escritora Marilene Felinto acusou o racismo de Euclides em sua participação, questão que também foi bastante discutida no Ciclo do Autor Homenageado, uma parceria que a Flip faz com o Sesc CPF, e que teve minha curadoria em parceria com a professora Walnice Nogueira Galvão.

A boa recepção da Flip com Euclides da Cunha fez com que o convite para a curadoria se repetisse em 2020. Minha principal exigência para seguir era que a homenageada fosse dessa vez uma mulher. Tendo isso em mente, optamos por homenagear Elizabeth Bishop, novamente uma escolha compartilhada entre curadoria e direção artística (era desejo antigo da Flip homenagear Bishop). A ousadia de decidir pela primeira vez por uma estrangeira me pareceu um bom desafio: num momento de fechamento de fronteiras e acirramento de nacionalismos, me parecia ser oportuno olharmos para fora como modo de olharmos também para dentro. E, ainda, seria uma forma de prestar homenagem também aos grandes tradutores de poesia no país. O Brasil tem uma tradição fortíssima de tradução, que é desconhecida de muitos. Além disso, a própria Bishop verteu poesia brasileira para o inglês, apresentando ao mundo anglófono escritores como Drummond e Clarice Lispector. O fato da poeta ser homossexual também pesou — lembrando que o preconceito com a população LGBTQI+ vem num crescente no Brasil. Dentro de minha curadoria, pretendia ressaltar sua biografia multifacetada, trágica e queer.

Para além da homenagem, eu havia decidido que pelo menos metade dos convidados de 2020 seriam autoras e autores negros, o que também seria inédito. Eu já tinha a maior parte dos convites confirmados quando veio a Covid 19. Desde o princípio defendi que não se poderia definir prematuramente uma nova data para o evento. À minha revelia, a Flip foi postergada para novembro. A pandemia se agravou, a condução genocida que o governo federal fez da crise sanitária deixou tudo muito sombrio. Cada vez mais me parecia que a celebração desenhada previamente pertencia a uma outra época e tinha perdido sentido. Não havia nada a ser comemorado. Ainda não há. Era preciso repensar a curadoria e até mesmo o próprio evento — virtual ou não — à luz dos acontecimentos.

Ainda, em meio às denúncias crescentes do movimento negro brasileiro, veio o brutal assassinato de George Floyd nos Estados Unidos, no dia 25 de maio, e a poderosíssima reação impulsionada pelo movimento Black Lives Matter. Esses dias mais intensos de levante antirracista me fizeram entender que precisamos lutar mais ativamente, agir da forma mais contundente possível. Mais que uma programação com autoras e autores negros, a Flip agora precisa de uma curadora negra para reinventá-la nesse mundo pós pandemia. Uma mulher negra, na minha opinião, é a renovação que o evento mais importante da literatura do país precisa. Ao longo de 18 anos, a curadoria da Flip jamais foi ocupada por uma pessoa negra. Passou da hora disso mudar. Como curadora, entendo que é meu papel levar em conta questões artísticas e políticas (sendo que a arte, por sua vez, é sempre política). Por essa razão, decidi pedir demissão e declarar meu desejo de ceder esse espaço de privilégio de forma pública. A direção da Flip reagiu positivamente à minha ideia, o que me deixa esperançosa. Sou sinceramente grata a Flip por tudo que pude aprender e criar nesse trabalho, que é acima de tudo coletivo."

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