No final dos anos 1980, a Empresa Brasileira de Filmes S.A (Embrafilme), braço estatal do Governo Federal responsável pela distribuição e coprodução de filmes, mergulhava em sua derradeira crise. A empresa de economia mista foi criada em 1969 e durante sua vida, colaborou com projetos que vão dos Trapalhões nomes como Nelson Pereira dos Santos (O Amuleto de Ogum) e Cacá Diegues (Xica da Silva). A dura crise econômica da década perdida, campanhas contra o trabalho da empresa e problemas com prestações de contas foram elementos que ajudaram a esgotar a iniciativa que fazia o cinema brasileiro pulsar. Em 1990, Fernando Collor de Melo joga a última pá de cal com uma canetada, lançando a produção nacional em um dos maiores apagões de sua história.
Especialistas e trabalhadores da área veem elementos se repetir e uma nova e perigosa crise vem se instaurando no funcionamento da Agência Nacional de Cinema, entre cruzadas políticas e econômicas há mais de dois anos. Na verdade, os impactos ganham contornos maiores levando em conta as atribuições da Agência, diferente daquelas da Embrafilme, já que é responsável pelo fomento, fiscalização e regulamentação do setor. Entra também na equação uma cadeia de produção altamente organizada que, por meio de iniciativas da Agência, pôde encontrar uma certa estabilidade e movimentar cifras milionárias e gerar empregos.
A paralisação já é uma realidade. Desde 2018 que a Agência não anuncia editais do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), principal ferramenta de fomento da autarquia, responsável por fomentar produções entre curtas, longas e séries para televisão. Apenas com a pandemia foi anunciada uma linha de financiamento emergencial de recursos do fundo, incluindo recentemente uma de apoio ao mercado exibidor. Os entraves partem de dois frontes, um econômico e outro de político. O primeiro começa e se arrasta desde 2017, quando uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) apontou problemas nos métodos de prestação de contas da Agência, mesmo esses sendo previamente aprovados por órgãos como o próprio TCU. Em 2015, como uma tentativa de melhor dar conta desse processo de aprovação de contas, foi criado o Ancine Mais Simples, que analisava projetos por amostragem, metodologia duramente criticada pelo TCU.
Assim, a Ancine ficou praticamente travada desde então, para tentar dar conta da situação perante o TCU, fazendo brotar uma série de controvérsias perante o eixo produtor, passando pela afirmação de haver um rombo que impossibilitaria cumprir acordos já firmados e a divulgação de uma lista de mais de 4 mil processos com aprovação de contas pendentes, alguns com mais de uma década desde sua realização. Para Vera Zaverucha, autora do livro Desvendando a Ancine, ex-diretora e integrante da agência desde sua fundação, a questão passa por alguns problemas já conhecidos dentro do funcionamento do órgão, como a falta de uma percepção mais sensível aos mecanismos de uma produção cultural e a própria estrutura interna da agência.
"O TCU precisa ter regras de controle, claro, afinal é dinheiro público. Mas é preciso saber que a produção cultural é diferente de fazer uma ponte ou um edifício. É uma outra espontaneidade e uma série de imprevistos da própria natureza do trabalho que não pode ter esse tratamento tão rígido. A própria Ancine tem uma burocracia rígida que para uma produção fazer alterações de acordo com esses imprevistos, é um inferno. São regras de controle que são desnecessárias não só para o produtor, mas para a própria agência", explica Zaverucha. Ainda segundo ela, o número de funcionários para dar conta de todas as atribuições da agência é pouco e durante seu período trabalhando por lá, foi testemunha dos constantes pedidos de abertura de concurso para novas contratações.
Em abril, a Ancine divulgou em seus canais oficiais a criação de uma nova metodologia de prestação de contas, prometendo lidar com as pendências em quatro anos. Nas últimas semanas, foi divulgada a polêmica lista dos 4 mil processos pendentes, criticada por diversos agentes do setor como uma tentativa de desmoralizar a responsabilidade financeira dos produtores. Para Mannu Costa, produtora e professora doutora do departamento de cinema e audiovisual da Universidade Federal de Pernambuco, com atividades voltadas para políticas públicas, a lista é mais reveladora sobre os bastidores da agência, assim como de suas atitudes para tentar resolver a questão.
"É uma lista que atesta mais contra a agência do que aos produtores. Ela mostra contas pendentes de 20 anos atrás e mostrar que nesse tempo todo tem projeto de 2000 para ser analisado, quando a própria Receita Federal estipula um prazo de cinco anos para expiração das contas. O TCU tem que fazer o trabalho dele, mas a gente tem que observar qual a vontade da diretoria atual em brigar pela agência, pelas sensibilidade às características do negócio. Eu vejo uma falta de interesse de chegar junto ao TCU para fazer isso", explica Mannu. Zaverucha e Costa também relatam as pressões que esse cenário gera em servidores, tanto em temores por serem impelidos a fazer algo e depois responder juridicamente pelo TCU, como em pressões para aprovar ou desaprovar projetos seguindo orientações políticas, incluindo exoneração de servidores.
E aqui entre outro fronte de disputa na Ancine, o político, passando por disputas internas e conflitos que chegam ao Poder Executivo. Disputas no alto escalão da agência, a diretoria-colegiada, já toma alguns anos. Uma situação limite se deu quando Christian de Castro foi afastado do cargo de diretor-presidente por uma medida judicial e o mandato de Debora Ivanov chegou ao fim em agosto passado, deixando apenas Alex Braga, atual diretor-presidente como o único no colegiado de quatro diretores. Para não ocasionar uma paralisação total, Braga e Ivanov precisaram autorizar uma portaria permitindo o diretor remanescente a aprovar projetos e liberar recursos. Apenas em janeiro, o presidente Jair Bolsonaro escolheu o pastor Edilásio Barra, conhecido como Tutuca, Vinícius Clay e Luana Rufino para a direção, em caráter interino.
Bolsonaro tem uma posição de guerra em relação a Ancine. Já afirmou desejava o fim da agência caso não pudesse trazer filtros aos projetos apoiados pelo órgão. É o que reflete as indicações de Tutuca e de Verônica Brendler, organizadora de um festival de cinema cristão, para ocupar o cargo de diretores-titulares. Zaverucha vê um movimento de sufoco por parte do governo federal ao se notar a inconstitucionalidade dessa tentativa de impôr filtros temáticos sobre a produção apoiada, algo que nunca existiu no trabalho da agência.
"Eu vejo essa tentativa de asfixiar a Ancine para ele não precisar de uma canetada para acabar com ela, como Collor fez com a Embrafilme. Se antes havia uma ideia de aparelhar e construir uma política que satisfaça um governo conservador e de direita, eles seriam mais rápidos em nomear diretores para fazer essa política conservadora. É criado esse ambiente de fragilidade, liberando poucos recursos e não dando segurança para os produtores. Os interesses da Ancine, de nacionalização, não têm espaço nesse governo", relata Vera. Ela acredita que o cenário seria outro caso a Ancine tivesse a autonomia que deveria ter, sendo uma agência de estado e não de governo, sujeita a interrupções nas continuidades de suas políticas. Zaverucha não enxerga um cenário de estabilidade futuro no governo atual.
O clima de instabilidade também causa temores na produção pernambucana, que por meio de incentivos diretos ou indiretos, como a lei que estipula cotas nacionais para a programação da TV fechada, pôde alcançar novos patamares. O produtor João Vieira Jr, da Carnaval Filmes, faz coro às críticas em relação a uma morosidade e um processo de desmonte da agência. Há um sentimento agridoce em ver alguns dos filmes que produziu, ao lado de diretores como Marcelo Gomes e Hilton Lacerda, sendo exibidos em uma programação especial para o cinema pernambucano na Globo Nordeste, ao mesmo tempo em que o futuro é nebuloso.
"Há recursos contingenciados por falta de apresentação de um plano de investimento. Também não vejo a agência fazendo uma defesa adequada perante o TCU e outras jurisprudências de prestação de contas. Me parece que é algo feito com intuito de confundir a opinião pública contra um setor que paga com impostos os recursos que o sustenta", relata João, lembrando que boa parte do FSA vem da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Codecine), imposto que incide sobre diversas atividades do setor.
Mannu vê o setor se organizando e elaborando estratégias de resistência nesse cenário, com sindicatos e entidades se organizando e judicializando a briga, incluindo uma série de mandatos de seguranças para que sejam honrados compromissos já firmados. "Pernambuco possui uma classe muito organizada e que sabe que o campo artístico político é um campo de disputa. Nunca foi garantido que o estado participasse, mas se foi disputando políticas no sentido de democratizar o acesso e a produção da arte", explica Costa. Em relação à políticas públicas que estimulam a produção, Pernambuco traz mecanismos próprios em continuidade, culminando no principal deles, o Funcultura Audiovisual, lançado desde 2007.
Desde 2014, o Funcultura Audiovisual conta com aportes do FSA, saltando de aproximadamente R$ 11 milhões para R$ 20 milhões em aportes entre 2013 e 2014. As dificuldades da Ancine e as paralisações no FSA, atrasaram o edital de 2018 enquanto se deliberava como prosseguir: tentar contar com uma possível liberação de recursos da agência ou seguir com recursos próprios. A escolha foi pela segunda alternativa e os editais de 2018/2019 e 2019/2020 foram publicados juntos em dezembro passado, com resultados previstos para novembro.
Mannu acredita que mesmo sofrendo possíveis impactos em um cenário que o FSA deixe de ser uma realidade à médio prazo, o Funcultura se mantém em pé e encontrará maneiras de estimular a cadeia pernambucana, talvez em um outro nível. "Nós temos mecanismos que existem até desde antes da Ancine e é importante ter esse fundo regional. Saindo esse aporte do FSA, talvez haja uma redução no tamanho das produções ou no número de projetos. Vai caber à sociedade civil travar esse embate com o estado para termos uma continuidade", afirma Costa
Já João vê a manutenção da força do Funcultura como uma estratégia que já vem sendo traçada em outras áreas. "Seria uma atitude de resistência, que vai manter o setor cultural funcionando, assim como os arranjos regionais de outros estados. É um pouco como acontece hoje na saúde, com os estados e municípios encampando a linha de frente no combate à pandemia", elabora João. A Ancine foi acionada pela reportagem para prestar esclarecimentos, mas não se pronunciou.
Segundo Silvana Meireles, secretária executiva da Secretaria de Cultura de Pernambuco (Secult) e Luciana Poncioni, coordenadora de audiovisual da Secult, o diálogo realmente está difícil com a Ancine desde 2018, com as mudanças na diretoria e as intervenções de órgãos externos. O resultado disso foi a já citada prejudicada parceria entre o FSA e o Funcultura, incluindo novos entendimentos sobre as regras de como deveriam funcionar os arranjos regionais, como é o fundo da Secult/Fundarpe.
“Com toda a crise que a Ancine atravessam colocando em risco a própria existência, as expectativas giram em torno do 14º edital do Funcultura Audiovisual, onde o Funcultura obedeceria às novas imposições da Ancine, com redução do investimento por parte da Agência. No médio prazo, estamos diante de um cenário de incertezas”, explica Meireles. Poncioni vê uma cadeia que começa no impacto dos valores anuais investidos no setor, provocando um desaceleramento na produção que crescia progressivamente.
"No caso de Pernambuco, esse cenário impacta numa redução de cerca de 50%, já que a Ancine deixaria de fazer um aporte de R$ 15 milhões através do FSA. Na última reunião com a agência, obedecendo às dezenas de diligências negociadas no ano passado, a perspectiva é que o próximo edital seja lançado ainda com o aporte do FSA, porém com um valor reduzido", relata Luciana. Novas estratégias de destinação dos recursos serão discutidas com o Conselho do Audiovisual local.