Na última segunda-feira, completou um ano desde aquele sábado no qual uma fila começava na Rua da Aurora, passava pela Avenida Conde da Boa Vista e voltava à Aurora, arrodeando o prédio do Cinema São Luiz. Depois de um aclamado passeio por lugares como Cannes, Sydney e Lima, Bacurau chegava ao cinema de rua que conseguiu resistir, ao seu modo, à invasão dos multiplexes gringos dos shoppings, algo que de alguma forma ressoava na história da cidadezinha à oeste de Pernambuco que seria exibida ali.
Por lá, estiveram os diretores Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, acompanhados de dezenas de atores, produtores, técnicos e outros envolvidos na produção, dando uma dimensão do que é fazer cinema no Brasil enquanto memória, representação e economia. Na quinta-feira seguinte (29), o filme faria sua estreia comercial, engatilhando de vez os debates e pautas na imprensa, na crítica e nas redes sociais, incluindo destrinchamentos, problematizações, defesas, histórias e memes.
Desde a estreia em Cannes, de onde saiu premiado, no mês de maio, já havia gente vendo e falando sobre Bacurau, em termos bem positivos em um panorama geral. Mas os olhares brasileiros, em especial os do Nordeste, conseguiram penetrar mais à fundo nos círculos narrativos e simbólicos do filme, como relembra Kleber. "Quando o filme chega no Brasil, a questão da cultura, da língua e da identidade torna tudo mais intenso. Bacurau traz relações de mundo, conflitos que o ligam com o mundo. Mas é um filme brasileiro, que se passa no Nordeste, que ainda se passa no sertão do Nordeste e em cada círculo desse, ele vai se apresentando mais forte. São muitos elementos de Brasil ali que o público capta e sente no coração, algo que aumenta no Nordeste”, elabora Kleber.
Para Dornelles, essa reverberação que o filme teve por aqui era um sentimento novo, mas já prevendo um impacto diferenciado que viria, levando em conta o que aborda Bacurau e como ele faz isso, como suas articulações com o cinema de gênero. "Era o terceiro filme de Kleber, ele já tinha essa sensação, mas particularmente pra mim, era tudo muito novo. Mas acaba que ele se comunica muito forte com quem tem uma sensibilidade social, um filme sobre pessoas desassistidas e que sofrem essas negligências históricas. No Nordeste então, isso é algo que está muito à flor da pele. Acabou que as exibições por aqui se tornaram algo muito raro e único, me sinto sortudo de ter vivido isso, em sessões como as do Recife e de Fortaleza, que o cinema parecia vir abaixo", relembra Juliano.
Não que lá fora a recepção tenha sido morna. Em setembro, Bacurau estampava a capa da francesa Cahiers du Cinéma, talvez a mais prestigiada revista de cinema do mundo. Na edição, já se apontava as articulações políticas e estilísticas do filme, que entrou na lista dos dez melhores filmes do ano feita pela publicação. Mas teve também quem se apegasse mais aos aspectos formais do filme, com suas aproximações ao western, o terror e o dito cinema b. Nos Estados Unidos, ambos os diretores tinham uma curiosidade em saber como seria visto Bacurau, levando em conta o núcleo de vilões estadunidenses.
Kleber relata que houve quem achasse caricato e lembra de um episódio no Festival de Cinema da Nova York. Na hora das perguntas, um senhor idoso pega o microfone e diz ter gostado do filme, mas indaga "eu só fiquei sem entender uma coisa: por que os americanos são malvados?", ouvindo um "por que não?” como resposta, que arrancou risos da platéia e do próprio questionador. "É uma pergunta que vem mais de 100 anos de uma cultura de cinema onde os Estados Unidos manda as ordens, com sua força inescapável de indústria, de fazer e vender filmes. É um Duro de Matar com inimigos alemães que nem falam alemão de fato ou russos, mexicanos e estrangeiro como vilões em qualquer filme comercial. Uma das coisas que acho foda em Bacurau é como ele fez os americanos sentirem isso com essas observações”, afirma Kleber.
Por aqui, levando em conta tudo o que o filme carrega de político e a polarização política do país, notaram também que esse olhar mais voltado para o que Kleber chama de “a carpintaria do filme” acabou chamando a atenção de uma forma semelhante entre diferentes espectros de posicionamento ideológico, mesmo com uma certa relutância. O cineasta vê Bacurau furando uma bolha que não conseguiu com Aquarius (2016), incluindo a adesão de uma parcela jovem do público, que se formou vendo filmes americanos e se viu surpreso com um filme brasileiro dentro dos temas ao quais já vinha sendo apresentados.
Dornelles também vê um quadro parecido na chegada do filme para pessoas de diferentes lugares e posicionamentos políticos. "Tem muitas pessoas de direita, conservadores, que gostaram do filme. Há diferenças de maneiras de ver o filme que diferem do lugar de onde vêm. O que chama atenção no filme chama igual pra todo mundo. Mas pessoas que tem uma posição mais conservadora, posso até chamar de reacionária e de direita, se incomodaram do filme, isso em qualquer lugar em que ele foi visto. É engraçado porque tem algumas menções ao comportamento entre sudeste e nordeste no filme, alguns se ofendem, mas a maioria se vê no espelho e vê um debate importante. Há pessoas que acham que o filme é uma arma de propaganda do comunismo, uma visão esquizofrênica", comenta Juliano.
Mas talvez aqueles que tiveram maior impacto pelo que é visto em Bacurau sejam os próprios moradores de Bacurau, ou melhor, de Barra, povoado potiguar do Sertão do Seridó onde o filme foi rodado. Segundo Juliano, há uma via de mão dupla de pertencimento, com "as pessoas de lá se sentindo pertencidas ao filme e o filme sendo pertencido a elas". Ele diz que conhecia histórias de produções grandes que passam por cidades pequenas e mais se assemelham a uma "praga de gafanhotos", mesmo que injetando algum dinheiro. Houve conversas com a equipe levando a preocupação para isso não acontecer, levando a uma relação de respeito e carinho com os moradores do local. Ainda há contato até hoje entre a equipe e os ilustres anfitriões, que receberam uma das primeiras exibições do filme.
Mas, mesmo com um certo impacto positivo na comunidade, Kleber chama atenção a uma série de dificuldades e descasos por quais passa a localidade. "Do ponto de vista público, não vejo tantas melhorias para a comunidade. O ambulatório do filme, por exemplo, é ficção, não existe lá. A cidade referência para eles é Parelhas, que fica a 50 minutos em estradas não tão bem cuidadas, apesar de um esforço da Prefeitura em melhorar o acesso. Eles mantiveram algumas coisas do filme, é curioso a produção altera a comunidade. Ainda recebem gente curiosa para conhecer, mas não sei se virou uma fonte de renda", diz Kleber.
E por falar em política públicas, o caminho de Bacurau se desenrola enquanto há uma série de ataques na esfera cultural. Ele estreia pouco depois do presidente Jair Bolsonaro falar em acabar com a Agência Nacional de Cinema (Ancine) caso não pudesse colocar um filtro lá, em um momento no qual a Agência já vivia momentos turbulentos desde gestões anteriores, praticamente paralisada. Já em uma espécie de segunda onda do filme, com sua estreia em reaberturas de cinema de países como Holanda e Taiwan, depois de uma jornada nos Estados Unidos que precisou ser interrompida com a pandemia, temos o risco que corre a Cinemateca Brasileira em uma tumultuada disputa envolvendo a Secretaria de Cultura.
"Bacurau já expunha a irrealidade dessa situação do Brasil, o quão absurda é a situação política e social que enfrentamos nesse momento, em especial com a saúde e a cultura. Não que os resultados devam ser medidos em relação à mercado, mas o filme mostra o impacto da cultura na sociedade e economia, geramos cerca 800 empregos, podendo chegar a 2000, além de devolver em múltiplas vezes o investimento feito com dinheiro público. Querem acabar com o sistema de estímulo baseado numa fantasia ideológica, a mesma coisa que acontece na saúde com uma pandemia histórica. O cinema brasileiro está sendo cortado em seu momento mais feliz e produtivo, em relação não só a mercado, mas em diversidade, qualidade e quantidade de filmes feitos", afirma o diretor.
As perspectivas em relação a uma continuidade de produção, sobretudo a pernambucana, tem suas doses de otimismo na visão da dupla. Juliano ressalta que “ser artista é ter vocação para a teimosia”. “Temos mais de uma geração diversa cineastas e artistas talentosos, com sua própria voz e identidade. Essas pessoas não vão simplesmente desaparecer, mesmo que tentem fazer isso, não tem dinheiro no mundo que pague e apague. Se pensarmos em tamanho em um sentido de orçamento, talvez demore para termos algo como foi Bacurau. Mas em termos artísticos, não tenho dúvidas de que vão aparecer vários outros de grande impacto, com liberdade, desejo e honestidade”, afirma.
Kleber vê como imperativo o setor político no âmbito estadual e municipal se articular na luta pela preservação da cultura que é feita aqui. "O Governo de Pernambuco precisa mostrar uma movimentação completamente oposta ao está acontecendo fora do estado, não só essa gestão de Paulo Câmara, mas como a próxima que vier. Somos um dos estados mais fortes do ponto de vista da expressão artística e cultural. Precisamos também nos juntar enquanto classe. Temos uma oportunidade, por exemplo, na reinauguração do Teatro do Parque, de nos juntarmos para saber o que será feito com ele, o que a Prefeitura pensa enquanto política para ele e quem são as pessoas que tomarão decisões lá. É preciso catalisar a cultura e fortalecer a efervescência", relata Kleber.
O Teatro do Parque e seu processo de restauração faz parte de um dos próximos projetos de Kleber, descrito como um filme-ensaio que se debruça pela arqueologia do centro do Recife, em especial as salas de cinema, partindo de um amor por um Recife que ainda está ali, mas escondido por debaixo de outra cidade. Já Juliano vem conversando com produtores e mirabolando ideias e roteiros, além de estar no processo de finalização de um filme rodado antes de Bacurau, mas sem maiores detalhes revelados. Dornelles também fala da possibilidade de um retorno à Bacurau. "Por desejo popular e pessoal, eu e Kleber consideramos a possibilidade de escrevermos juntos de novo uma espécie de segundo Bacurau. Não sei se dá pra chamar de sequência ou um prequel, mas discutimos isso de forma tranquila", afirma.