Ter em mãos um livro de estreia é sempre um misto de curiosidade e expectativa. Conseguiremos, enquanto leitores, nos identificar com o autor através de sua primeira obra? O que há, em meio à ficcionalidade desta narrativa, de pessoal? Quando o livro em questão é de poesia, parece que essas perguntas se intensificam, pois costumamos interpretar os poemas como fruto de uma escrita muito intimista e autobiográfica.
Apaguei a Playlist/ Comecei a Dançar (Castanha Mecânica, 96 pgs., R$50), estreia literária do pernambucano Fernando de Albuquerque, consegue não apenas responder a esses questionamentos como nos instiga a acompanhá-lo também através das canções que permeiam o texto e o subtexto.
Com 13 poemas, a obra foi contemplada como menção honrosa no Edital de Chamamento Público lançado em dezembro de 2019 pela editora Castanha Mecânica e se encontra até o próximo dia 31 de agosto em pré-venda com frete grátis. O lançamento está previsto para a primeira semana de setembro, através de uma live.
O elo da poética de Fernando com a música vai muito além do título ou das referência diretas a determinados artistas: ao final do livro encontra-se uma orientação para acessar a playlist no Spotify e um convite para reler o livro, desta segunda vez em sintonia com Baby do Brasil, Jake Shears, Weezer, Otto, Jpu Division, Daniela Mercury ou Emicida, para citar alguns.
Uma seleção musical que simboliza bem o tom pop contemporâneo dos versos da obra. O eu lírico de Apaguei a Playlist/ Comecei a Dançar é fruto de seu tempo, dos relacionamentos líquidos, da criação cristã (e sua culpa que permanece viva ao longo da vida adulta), de uma identidade latino-americana em construção e do desejo de seguir adiante.
"A memória é, primeiro, um campos de omissão de fatos e pessoas que passaram pela nossa vida. E a música sempre nos remete a momentos e relações, então no livro procurei revelar isso a partir desse eu lírico que se pergunta: o que foi que fiz para chegar até aqui? A memória sempre atrelada ao outro", explica Fernando.
O tom é confessional mas nunca lamentoso. Ao longo de seus versos, este personagem nos convida a uma sessão de terapia muito pessoal, um tanto etílica, como numa conversa de bar já chegando ao fim, a respeito de ex-namorados, pai, mãe e alguns possíveis traumas vividos na infância.
Nomeados com nomes masculinos, os poemas tratam majoritariamente de relações amorosas. "Depois do orgasmo/ tudo ficou opaco/ a voz de locutor am/ o nariz imperialíssimo/ o ar de riso mais canastrão/ que coronel nascimento (...)", relata em Henrique. Ou ainda "(...) fantasia é, aqui, muito mais que o substantivo feminino./ ela não diz apenas respeito à/ nossa faculdade de imaginar, criar coisas/ ou situações. a verdade é que fantasiamos/ quando o inevitável bate a porta dos fundos da nossa consciência (...) em Cláudio.
Literariamente não faz diferença que estes sejam relacionamentos LGBT, são encontros e desencontros amorosos urbanos. Mas politicamente é sempre importante ressaltar. "É notório que esse eu lírico está falando de um lugar social específico. Passamos muitos anos construindo nosso local de fala e acredito que eu nunca conseguiria escrever de algum outro que não o meu. Personagens LGBT são muitas vezes sub-representados na literatura, ainda existem as prateleiras reservadas a livros que tratam da temática nas livrarias, o que não faz sentido", ressalta Fernando.
Em sintonia com o texto encontram-se as ilustrações do baiano Márcio Junqueira, do perfil @diario_de_pegacao no Instagram em que ele compartilha os desenhos feitos em cima de passagens de ônibus, convidado pelo editor Fred Caju.