O confinamento que marcou tão fortemente os últimos cinco meses nos levou a um confrontamento, nunca antes vivenciado, com a noção do tempo e do ato de ter que ir à rua. Uma saída à padaria em pleno mês de abril era movida pelo medo mas também por um certo alívio de poder sair de casa e contemplar o céu, as árvores no trajeto e a vida fora das quatro paredes. Também a arte - através de filmes, séries, livros, exposições virtuais, lives de shows - ganhou novos status. Muito mais do que um produto de entretenimento, um meio de enfrentar as paranoias e a tensão provocadas pela crise sanitária mundial.
Para Cida Pedrosa não foi diferente. Apesar de atuar como escritora desde os anos 80 e de já ter publicado nove livros, ela encontrou nas palavras novas formas de enfrentar o medo e de fazer poesia durante esta quarentena. O resultado dessa produção é o livro Estesia (90 pgs, R$ 20, Edições Claranan), que será lançado nesta quinta-feira (3), às 19h, através de um encontro ao vivo e aberto pelo Google Meet, com uma participações de Sidney Rocha, Amélia Reinaldo, Lourival Holanda, e Clecia Pereira, além de um recital com Susana Morais, Silvana Menezes e Mariane Bigio. Toda a renda arrecadada pelas vendas será doada à União Brasileira de Mulheres para a campanha Distribua Amor, Doe Alimentos.
A obra reúne 40 haicais e 40 fotografias que dialogam sempre em dupla, abordando as pequenezas do dia a dia da vida urbana. Há diversas formas de ler e interpretar o livro, mas na verdade foram as fotos, tiradas de celular pela própria Cida, que inspiraram o texto. "É um livro que nasceu da contemplação, que é algo da tradição do haicai e também uma atividade que sempre me foi muito cara na minha infância em Bodocó. Quando cheguei no Recife, no final dos anos 1970, também continuei contemplando, a cidade era completamente nova para mim. Mas o tempo foi passando, chegando aos 30 anos eu trabalhava muito e o Recife foi me engolindo", lembra.
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"Aí veio a pandemia e fomos obrigados a permanecer em retiro para proteger os outros e nos proteger. De início fiquei paralisada, como muitos. Tenho duas irmãs com saúde mais frágil e tinha muito medo de perdê-las. Foi o reencontro com a contemplação e, a partir dela, da escrita desse poemas que me salvaram desse sentimento. Fui percebendo novamente a cidade, sem carros, vazia, como é linda e cruel. O belo nos passa às vezes despercebido por causa do nosso envolvimento com o cotidiano."
A temática da natureza é predominante na estrutura clássica desta forma poética japonesa, assim como a estrutura formada por 17 sílabas, ambas presentes em Estesia. "O espelho pranteia/ Nosso solidão de eras./ Britas testemunham", escreve em dos haicais acompanhado de uma fotografia de um muro incrustado de um pequeno espelho.
Ou "Nudez censurável/ Aos olhos dos que esperam/ A vida é um surto.", provocada pela imagem de uma vitrine de loja abandonada com alguns manequins vazios, e "O tempo sentado/ Sem o rugido das horas./ O azul se desfaz", diante de uma parada de ônibus vazia.
Também quase todas as imagens e textos surgiram do que Cida testemunhou pelas pequenas andanças com Bob Marley, seu cachorro idoso que precisava sair diariamente. Com o celular na mão e a inpiração contemplativa na cabeça, ela muitas vezes gravava a ideia do poema em áudio logo após tirar a foto e, ao chegar em casa, trabalhava a escrita. Processo, este, bem diferente daquele que guiou a escrita de O Cavaleiro da Epifania (1986), As filhas de Lilith (2009) ou Gris (2018), para citar apenas alguns de seus livros anteriores.
"Esse livro é diferente dos outros porque ele nasce da emoção para depois ser intelecto. Todos os haicais foram assim. A beleza me provocou, a dor me provocou e eu fui atrás. Normalmente a poesia nasce um insight, de uma frase, e você tem que ralar, escrever e reescrever para chegar em sua forma final", pontua. "Estesia fala também bastante sobre Deus, sobre a morte, a existência. A gente ressignifica a vida quando nos vemos colocados diante da possibilidade da morte."
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