LITERATURA

Raimundo Carrero denuncia violência policial em livro Estão Matando os Meninos

As 19 narrativas do novo livro do premiado autor pernambucano são de contos que passeiam entre o relato ficcional e jornalístico

Valentine Herold
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Valentine Herold
Publicado em 29/09/2020 às 16:40
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SEM NOSTALGIA Sempre crítico e ativo, Raimundo Carrero, 73 anos, dispensa a obviedade e permanece atento às questões de nosso tempo - FOTO: ARQUIVO/JC IMAGEM
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Alguns livros precisam de tempo, meses ou anos de maturação até serem publicados, seja por demandas pessoais de seus autores ou pelas próprias temáticas das narrativas. Já outros são escritos no calor do momento de determinados acontecimentos, e logo em seguida lançados no afã de não deixar o timing passar. É como se certas histórias tivessem o poder de provocar quem vai escrevê-las quase que exaustivamente, até que o ponto final seja colocado. Foi assim com Raimundo Carrero e seu recém-lançado Estão Matando os Meninos, pela editora Iluminuras (128 pgs., R$ 25 o e-book e R$ 44 o livro físico).

Formado por 19 textos, o livro trata da violência urbana, policial e doméstica da qual sofrem as crianças brasileiras. Entre essas linhas ficcionais de dor e revolta, é possível reconhecer casos reais que tomaram conta do noticiário recente e que revelam o quanto Carrero, prestes a completar 73 anos, permanece mais do que nunca atento às questões do nosso tempo, por mais doídas que sejam.

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Aliás, antes mesmo de iniciar a leitura percebemos que estamos diante de um autor que se recusa a viver de momentos nostálgicos do passado e a repetir temas que lhe consagraram na literatura brasileira.

Na epígrafe, Jorge Amado e Jojo Todynho são lembrados pelo pernambucano de Salgueiro através dos trechos, "nas casas pobres as mulheres choravam " e "que tiro foi esse?", respectivamente do livro Capitães de Areia e da música homônima da cantora carioca. Um encontro inimaginável, mas que dá o tom para este livro que trata de questões seculares e atuais que tangenciam o tema principal do livro cujo foco é, na verdade, o Brasil profundo.

"O Brasil nunca soube cuidar de suas crianças, mas a violência aumentou muito nos últimos anos e estamos vendo cada vez mais jovens morrendo de bala. Às vezes penso se não é um projeto maluco de uma sociedade extremamente doente como a nossa, uma sociedade que não sabe mais o que é gentileza. Tem uma frase que um dos meninos sobreviventes da Chacina da Candelária [que aconteceu no Rio de Janeiro, em 1993] falou à época: 'estão matando a gente' e isso ficou na minha cabeça e inspirou o título do livro. No Brasil, nós vivemos em estado de guerra", conta o escritor.

 

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VIOLÊNCIA Fatos reais dos grandes centros urbanos inspiraram a escrita dos contos - DIVULGAÇÃO

Dividas em três partes (Quarta Carta ao Mundo, Quinta Carta ao Mundo e Sexta Carta ao Mundo), as narrativas de Estão Matando os Meninos são independentes mas interligadas por alguns elementos além do eixo temático. Há um fio que costura quase todas as história e ele se chama Arcassanta. Por vezes este é o nome da cidade sertaneja onde moram personagens, por outras um morro fictício do Recife e até um condomínio de classe alta. "Na história bíblica de David tem um trecho em que ele dança em frente à arca santa. Então eu criei Arcassanta como válvula de sobrevivência no livro", explica Carrero.

Há também uma linha tênue entre crônica, relato jornalístico e conto em todo o livro. Os primeiros textos foram livremente inspirados em casos recentes que chocaram o país, como João Pedro, morto em maio deste ano, aos 14 anos, em uma ação policial errônea dentro de sua própria casa; Ágatha que, aos 8 anos, dentro de uma kombi no Rio de Janeiro, foi atingida por uma bala da Polícia Militar há cerca de uma ano, ou ainda o menino Miguel que, em junho passado morreu ao cair do nono andar de um prédio no Recife quando estava sob os cuidados da patroa de sua mãe.

Essa estreita relação entre jornalismo e literatura está no cerne da própria atividade profissional de Raimundo Carrero - durante 25 anos desempenhou a função de crítio e chefe de redação. Da atividade de jornalista, ele carrega inclusive até hoje a mania de recortar notícias e guardá-la em pastas e cadernos.

"Gosto do jornal físico, de ler no papel. E aí revisitando esses meus livros de recortes tive a percepção de fato do aumento da violência contra as crianças. Inicialmente eu não ia publicar esse livro agora porque ano passado já lancei o Colégio de Freiras, então queria esperar. Mas com a obrigação de ficar em casa, do confinamento, tive o tempo para trabalhar no livro e os temas do momentos pediam para que eu lançasse logo."

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Os textos de Estão Matando os Meninos são todos tão violentos quanto o título. É uma violência estrutural denunciada por Carrero, como quando ele aponta para o racismo e para as desigualdades sociais amplificadas pela falta de empatia das pessoas, mas sobretudo uma violência física muito visual. Seus personagens são sofridos, agredidos, mortos por balas ou facadas. Por vezes parece uma escrita/leitura dramatizadas da vida real. Até alusões indiretas à pandemia do Coronavírus e a necessidade de confinamento aparecem nos contos O Mausoléu dos Nossos Amores.

"O escritor do século 21 não precisa pensar outra realidade para escrever, imaginar outros mundos, porque o nosso está tão sofrido que oferece muito material. E os jornais são, para mim, a testemunha da tragédia humana', conclui Carrero.

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