Há quase 80 anos, quatro pescadores partiram da Praia do Mucuripe, Fortaleza, em direção ao Rio de Janeiro, então capital federal, à bordo da jangada São Pedro para entrar na história das reivindicações laborais do país. Liderado por Jacaré, o grupo percorreu o litoral brasileiro com o objetivo de encontrar o presidente Getúlio Vargas e pedir a entrada de sua classe dentro dos direitos trabalhistas que vinham sendo estabelecidos em seu governo. A arriscada aventura em cima de uma navegação não tão segura ganhou os olhares da imprensa na época, que acompanhou a saga. Em sua conturbada passagem pelo Brasil, o lendário cineasta Orson Welles decidiu que filmaria a história dos jangadeiros para o malogrado projeto It’s All True (É Tudo Verdade). O filme ficou inacabado e Jacaré faleceu em um acidente durante as filmagens.
Agora é a hora de olhares locais contarem essa história, a partir de uma intensa pesquisa entre leituras, entrevistas e buscas, que culminarão no longa Jangadeiros da São Pedro, produzido pela pernambucana Viu Cine com direção de Neco Tabosa. A animação está em seus últimos meses de produção e contará a história de Jacaré, Mestre Jerônimo, Tatá e Mané Preto pelo mar no chamado raid, inspirado pelo diário de bordo pioneiro do líder da empreitada. Além do longa, que misturará animação com trechos em live-action, a iniciativa também ganhará uma série trazendo entrevistas de trabalhadores conterrâneos do grupo. A previsão é de que os projetos sejam lançados no próximo ano.
“Quando a gente começou a se enfiar na pesquisa, vimos que essa história era mais importante do que ela parecia. Outros raids de jangada foram minimamente registrado pela época, inclusive em Pernambuco. Os tripulantes não tinham a manha de registrar o que tinha acontecido. Jacaré correu para terminar a alfabetização dele e fez um diário de bordo. O que inspira a pesquisa da Berenice Abreu, principal autoridade sobre essa história, e o nosso roteiro é esse diário”, explica Tabosa. Segundo ele, o principal direcionamento é se aproximar de um registro que os próprios jangadeiros teriam feito da viagem, incluindo a liberdade poética de dar uma câmera para Jacaré, de onde virão os trechos em live-action do filme.
Nessa condução, o filme abarcará não só a trajetória da São Pedro, mas se permitirá passar por outros episódios que dialogam com a proposta da obra. É o caso da história do jangadeiro cearense Francisco José do Nascimento, mais conhecido como Dragão do Mar, um dos pioneiros da luta abolicionista do Brasil. Ele é citado por Jacaré como uma inspiração e terá sua história contada por meio de um poema, escrito e recitado pela escritora e MC Lilian Araújo, que dá voz também a Simoa, personagem também importante da luta anti-escravista no Ceará, mas não tão lembrada pelos livros de história.
Além de Lilian, o elenco de vozes conta com nomes como Arthur Canavarro, o professor ator e músico Lepê Correio, o coreógrafo, bailarino e pesquisador Orun Santana e o dramaturgo Samuel Santos, que vivem os jangadeiros. “Consegui montar um time muito forte que é formado por várias gerações de artistas pernambucanos. Arthur é um grande ator, Lepê é uma referência para tanta gente importante, Samuel também com seu trabalho no espaço O Poste, além da sorte de termos Orun, que dá vida a um personagem mais engraçado como é Tatá”, conta Tabosa.
A produção não desfruta de orçamentos astronômicos, principalmente levando em conta os recursos que obteve no Funcultura enquanto série documental, plano inicial do projeto, considerado por Neco um dos menos robustos do edital. “Pegamos a grana mais curta para fazer um dos projetos mais caros”, brinca Tabosa. Para levar adiante o projeto, ele contou com nomes como o diretor de arte Rogi Silva e o diretor de animação Felipe Soares para construir essa história dentro das possibilidades que tinham.
"Era uma preocupação minha e de Felipe de não fazer algo bom caso tentássemos criar um mar realista, um vento no pano da vela muito hiper-realista. Era melhor fazermos nossa versão do que era uma jangada no mar, o oceano batendo. O Rogi conseguiu estilizar isso para trazermos essa trama que não consideramos um road movie (filme de estrada), mas um sea movie. A saída foi essa, virar as costas para o que os americanos e europeus acham que é arte e beber em fontes africanas e afro-brasileiras", elabora o diretor.
O diretor destaca o diálogo do filme e sua produção com a situação da classe trabalhadora do Brasil de hoje, dos pescadores que ainda vivem muito do que viveram os jangadeiros aos próprios trabalhadores do audiovisual, passando por um momento de crise institucional nas políticas do setor, ressaltando o cenário ainda incerto no momento em que o filme for lançado. “Fazer um filme que tenta ser uma voz da classe trabalhadora em um cenário que dinheiro para produção artística está sendo perseguido e tirado de projetos já aprovados, em um cenário de pandemia e caos político, é estar vivendo um pequeno milagre”, conclui Neco.