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Além do thriller, 'Bom Dia, Verônica' evidencia feminicídio na Netflix

Em oito episódios, nova série nacional da plataforma é pano de fundo para discutir assuntos bastante sensíveis e urgentes da sociedade atual

Robson Gomes
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Robson Gomes
Publicado em 01/10/2020 às 5:00
SUZANNA TIERIE/NETFLIX
Verônica Torres (Tainá Müller) é uma escrivã que, a partir de um suicídio presenciado, puxa o novelo de assassinatos em série - FOTO: SUZANNA TIERIE/NETFLIX
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Dentro da Delegacia de Homicídios de São Paulo, poderia ser só mais um dia tranquilo para a escrivã Verônica Torres (Tainá Müller), mas ao presenciar um suicídio bem diante de si, alguns traumas de seu passado vêm à tona. Esse é o mote inicial da série Bom Dia, Verônica, o primeiro thriller original da Netflix no Brasil, que estreia na plataforma nesta quinta-feira (1º/10). Apresentada em oito episódios de 50 minutos, a obra é uma adaptação de um livro homônimo escrito por Raphael Montes e Ilana Casoy, que também assinam os roteiros da produção.

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Com direção-geral de José Henrique Fonseca, a série também é pano de fundo para discutir assuntos bastante sensíveis e urgentes da sociedade como violência doméstica, feminicídio e corrupção policial.

Ainda na sinopse, junto ao suicídio, na mesma semana, Verônica - que possui uma grande habilidade investigativa - recebe um telefonema anônimo de uma mulher desesperada. Determinada, acaba mergulhando no caso de duas mulheres: uma jovem suicida enganada por um golpista na internet e Janete (Camila Morgado), uma esposa subjugada pelo marido, o Coronel Brandão (Eduardo Moscovis), que se revela um inteligente serial killer. Ao se aprofundar nas investigações por conta própria, Verônica encara um mundo perverso, arriscando sua família e sua própria existência.

O Jornal do Commercio conversou com parte do elenco e os autores sobre a produção. Tainá Müller, que deu vida à personagem-título, conta como construiu a densa protagonista: "A minha preparação para Verônica foi intensiva e intensa, emocional e técnica. Tive aulas de luta, defesa pessoal, tiro, fiz laboratório na Delegacia de Homicídios para acompanhar o funcionamento da Polícia, como se faz uma investigação, como se analisa uma cena de crime. Estudei mais especificamente o feminicídio, como ele ocorre. O Sérgio Penna [preparador de elenco] me ajudou muito nesse processo. Nós nos debruçamos em cima desse roteiro, mais do que do livro. O livro nós lemos, mas como era uma adaptação, sabíamos que teriam mudanças ali e nos apegamos ao roteiro. [...] Para mim foi super intenso e as gravações também. A personagem também foi acontecendo quando vamos descobrindo fazendo".

Janete, a personagem interpretada por Camila Morgado, mostra a devastação de conviver com a violência dentro de casa. Para a atriz, Bom Dia, Verônica põe luz nas discussões necessárias, além de evidenciar o machismo da nossa sociedade. "Como vivi o papel da vítima, eu comecei a perceber que fiquei mais sensível para enxergar as coisas - não que antes eu não fosse, eu sempre enxerguei - mas com a Janete eu aprendi mais. Com essa amplitude, percebi o quanto a nossa sociedade é enraizada nesse machismo estrutural. O quanto ainda temos dessa violência de gênero - e ainda temos um longo caminho pela frente - e o quanto é importante discutirmos, abrir para o diálogo, e dar nome às coisas. É preciso dizer que isso é violência doméstica e, por favor, denunciem", ressalta a artista.

Ao incorporar o Coronel Brandão, Eduardo Moscovis entrega um serial killer com todas as características possíveis: a frieza no olhar, a doença e a psicopatia. E para o veterano de 52 anos, viver um personagem tão perverso tem sua função para o público. "[O personagem] Dá uma conscientização muito amarga da realidade que a gente vive, mas ao mesmo tempo - porque somos dessa forma e por isso trabalhamos com isso - dá uma lufada de esperança de que a partir disso aqui pode vir alguma coisa para clarear a vida de alguém que esteja por aí oprimida, sofrendo esse tipo de violência, e de alguma forma a gente ajude. Não temos mais idade para achar que vamos conseguir mudar o mundo - sabemos que não, está tudo certo - mas que vamos conseguir ajudar de alguma forma. E em mudança nós acreditamos", reflete o ator.

INSPIRAÇÃO LITERÁRIA

O livro Bom Dia, Verônica (DarkSide Books, 2016) foi escrito por Andrea Killmore. A autora, na verdade, é um pseudônimo de uma dupla formada pelo escritor e roteirista Raphael Montes e a criminologista Ilana Casoy. E eles também são responsáveis por adaptar a obra ao formato de série, junto aos roteiristas Carol Garcia, Davi Kolb e Gustavo Bragança. E à reportagem, Raphael relembra como a obra de ficção surgiu.

"Quando encontrei a Ilana, e todo o conhecimento dela, pensei em fazer algo juntos para unir o melhor do conhecimento e bagagem dela, e o melhor do que eu tenho. E aí encontrei a ideia de fazer um thriller investigativo. […] A Ilana me contou várias histórias reais e fomos pescando as que pareciam mais pertinentes. No momento em que estávamos escrevendo esse 'Silêncio dos Inocentes brasileiro', como falei para ela, eu brinquei que um dia isso seria uma série da Netflix. Isso anos antes da Netflix sequer me procurar para fazer algo. Na época, tinha acabado de lançar [a série] 3%, quando estávamos escrevendo o livro", conta o criador, que foi procurado pela empresa de streaming em 2017.

Mesmo sendo uma reconhecida e experiente criminologista, Ilana contou que ainda conseguiu se espantar ao ver a série Bom Dia, Verônica pronta: "Eu chorei muito vendo a série. É louco, porque eu já sabia de tudo o que ia acontecer a cada segundo. Mesmo tendo escrito o livro e a série. Mas ao ver essa equipe incrível trazendo novidades, os ângulos, a trilha... Então eu choro, me arrepio e me assusto. E fiquei me perguntando: como posso me assustar se já sabia de tudo? E eu nunca pude perder, não perdi, na vida real, essa sensibilidade. Muita gente pergunta se, ao longo da minha carreira, eu fiquei mais impermeável. Pelo contrário, fiquei mais permeável, porque se eu perder a emoção eu não escrevo mais. Então eu vou virar investigadora, vou virar perita... Vou fazer um trabalho técnico. E não é meu caso. Eu tenho que transpor uma emoção, tanto na vida real, quanto a ficção".

Para transpor o livro para a série, Raphael Montes conta que duas personagens foram criadas especialmente para a versão audiovisual. São elas: a irmã de Janete, Janice (Marina Provenzzano), e a delegada Anita (Elisa Volpatto), que esconde um passado que afeta diretamente a vida de Verônica. Junto a essas atrizes, o elenco se completa com nomes como Antônio Grassi (delegado Carvana), Silvio Guindane (Nelson), Adriano Garib (Prata), César Melo (Paulo), Juliana Lohmann (Paloma) e a pernambucana Pally Siqueira (Deusa).

FORÇA E FUNÇÃO

O JC teve acesso aos oito episódios e pode-se dizer que a série se apresenta forte e muito bem executada. Bom Dia, Verônica transporta o público para uma atmosfera tanto de perigo eminente, como o desejo enorme de solucionar os problemas que vitimizam as mulheres da história, além de um realismo assustador de algumas cenas. Também se destaca positivamente o desfecho no último episódio, em que o silêncio permeia boa parte do início do capítulo, e apenas a trilha e a respiração dos personagens conduzem a trama. Trilha sonora essa, inclusive, que tem a assinatura de Roberto Schiling e Dado Villa-Lobos, que entrega uma nova roupagem de Índios, um sucesso de Legião Urbana reinterpretado por Letrux, num momento crucial do enredo.

Aos que gostam do gênero thriller, esta série nacional da Netflix entrega isso com maestria, mas ela ganha uma função maior: o de abrir os olhos da sociedade. "[A série] me proporcionou um mergulho mais aprofundado e eu fiquei muito surpresa de ver de onde brota esse tipo de crime que é o feminicídio. Muitas das vezes são crimes inesperados para as pessoas ao redor, e não para a vítima", destaca Tainá Müller.

"Acho que a ficção também tem essa função da pessoa criar empatia, de se identificar com o personagem, e poder através disso dar nome ao que acontece na realidade em que vivemos. Nós vimos isso agora durante a pandemia como cresceu e o nome disso é violência doméstica. Eu acho que precisamos tocar nesse assunto e refletir sobre", completa Camila Morgado. "Que nós consigamos resvalar em todos os homens e setores. Que a partir da gente - dos algozes, de quem castra, de quem cerceia - e não das vítimas, consigamos sensibilizar e chamar um pouco de atenção para nos perceber um pouco nesse lugar da maneira mais sutil possível, porque nós não percebemos quando atuamos dessa forma", arremata Moscovis.

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