A morte de Miguel, tragédia que neste 2 de junho de 2022 completa dois anos, atravessa o tempo como uma síntese social; um resumo violento (porque é sem subterfúgio) das últimas consequências (e nem por isso raras) das questões de raça e classe que (des)estruturam o Brasil. E demonstra, particularmente, a falência no grande cômodo social que é o campo do trabalho, em que raça e classe ainda determinam qual função a pessoa executará; quanto do tempo da vida deverá dispor; com quanto deverá ser remunerada; se será protegida e terá descanso; se salubre ou insalubre; se é para viver ou sobreviver.
A empregada doméstica — função que Mirtes Renata, mãe de Miguel, exercia na casa de Sérgio Hacker e Sari Corte Real (condenada na última terça-feira, 31 de maio, a oito anos e seis meses de reclusão por abandono de incapaz com resultado morte) — e seu papel orbitando o planeta da família a que serve — sendo aquela que é imprescindível, mas não relevante; que é como se fosse parte da família, mas que na verdade é uma estrangeira naqueles metros quadrados — passou a protagonizar novos debates a partir da PEC das Domésticas, em 2013.
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A lei deu cauda à discussão que se levantou na tensão entre patroa-empregada montada no filme "Que Horas Ela Volta?", de Anna Muylaert, em 2015, com Regina Casé.
Anos depois, a atriz e diretora Ana Flávia Cavalcanti — que é negra e filha de empregada doméstica assim como Mirtes Renata — injetou suas reflexões quanto ao trabalho da mãe e de tantas mulheres brasileiras pretas e sem nenhuma ou pouca formação escolar na performance "A Babá Quer Passear". Vestida de pijama, acomodada dentro de um carro de bebê agigantado, e com um cartaz onde se lia o nome da performance, a artista foi a endereços frequentados pela classe alta para criticar a negação do lazer e do convívio em família a profissionais como babás e empregadas domésticas.
Já em 2019, a historiadora, rapper e influenciadora digital Preta Rara, que costumava compartilhar nas redes histórias de quando foi empregada doméstica, publicou o livro "Eu, Empregada Doméstica: A Senzala Moderna É o Quartinho da Empregada" (Editora Letramento), com relatos crus, dela e de outras mulheres País afora.
Solitária
O que vivem as empregadas domésticas na experiência de se dedicar a outras famílias e de habitar sem habitar lares que não são seus climatiza também um dos mais recentes lançamentos da Companhia das Letras, o livro "Solitária", da escritora e jornalista carioca Eliana Alves Cruz. Ela cavouca, com aparente conhecimento de campo, o quartinho da empregada, na sua arquitetura e em suas sensações.
"Solitária" é romance parte dele ambientado já no tempo da pandemia, mas suas questões estão no arco de algum progresso social que vem se deitando desde os anos 2010. Assim como em "Que Horas Ela Volta?", há um confronto geracional entre a mãe, a quem o futuro só reservou a possibilidade de ser empregada doméstica, e a filha, consciente em torno de tudo aquilo sobre que ficamos mais conscientes nos últimos anos — sobretudo, quanto à relação entre privilégios e oportunidades, cor da pele e origem social.
Na dedicatória, diz: "Para minha tia Maria da Glória, a Dodó, cujo rosto nunca vi e de quem apenas sei que o trabalho nunca a libertou".
Cada capítulo é nomeado por um cômodo, por um lugar da arquitetura dos prédios e de seus apartamentos — neste caso, de luxo. Há, inclusive, o quarto de despejo, em que faz uma referência (e, certamente, também reverência) ao livro-diário de Carolina Maria de Jesus.
O texto é, talvez, mais tátil (e sensorial, como em "Chorei sentindo o cheiro do sabão em pó na roupa pendurada no varal") do que visual. É que Eliana Alves Cruz mexe com estrutura, numa escrita bonita, intensa e sincera sobre vidas de Mirtes e Miguéis. Nessa, a ficção dá palavras às entrelinhas que as notícias não podem preencher:
"Hoje fico com pena do sacrifício que era se tornar invisível. Além dos espaços apertados que ocupávamos, o silêncio era um companheiro. Era preciso estar presente sem estar. Uma boa serviçal é silenciosa, e a criança que é a filha dessa mulher também deve ser. Ela não pode rir como uma criança, não pode pular ou fazer travessuras como uma criança. Ela não é uma criança. É um incômodo, alguém apenas tolerado."
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