Uma das mais atuantes vozes dedicadas à democratização da Justiça no Brasil, a desembargadora Andréa Pachá lança no Recife, nesta terça-feira (28), a edição comemorativa de dez anos de sua obra “A vida não é justa”. Autora deste e de outros livros, como “Segredo de Justiça”, “Velhos são os outros” e “Sobre feminismos”, a juíza integra a Academia Petropolitana de Letras desde 2015. Antes dos autógrafos, a escritora terá um bate-papo com o jurista José Paulo Cavalcanti Filho, membro da Academia Brasileira de Letras.
Em entrevista ao JC, Andréa Pachá, que fez parte do Conselho Nacional de Justiça, foi vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros e coautora da Cartilha da Nova Lei de Adoção, fala sobre a obra que completa uma década de lançada, sobre o papel do Judiciário na democracia, e sua paixão pela escrita e pelos livros: “Escrever sempre foi a maneira que encontrei de tentar entender o mundo, suas complexidades e contradições”, diz.
JC - Dez anos depois do lançamento, como você vê o que escreveu em “A vida não é justa”?
Andrea Pachá - Vejo as histórias passadas muito atuais, mas também vejo uma imensa transformação na sociedade, que trouxe novos conflitos afetivos e familiares, que emergiram com o hiperconsumo, com a espetacularização da vida, e com as redes sociais.
Ainda somos os mesmos, mas não vivemos como nossos pais…
JC - Como a Justiça tem sido impactada por essas mudanças? E como pode atuar para que os impactos sociais das mudanças sejam positivos, e não, negativos, como as fake news, por exemplo?
Andrea Pachá - A Justiça tem sido procurada para solucionar questões que não necessariamente deveriam ter a intervenção do Estado, especialmente em matérias afetivas, com divergências sobre escolas, religião, comportamento, etc. A política igualmente tem recorrido à Justiça para decidir sobre questões cujas soluções deveriam nascer da própria política. É um cenário de desfuncionalidade. No entanto, a intervenção do Judiciário, mesmo nesse cenário, tem sido fundamental para garantir a democracia e a primazia da Constituição.
Na esfera dos direitos privados, penso que a Justiça pode colaborar, encaminhando as partes para mediação, conciliação, que são firmas de composição mais desejáveis e efetivas. Com relação às fake news, o controle judicial pode ser uma das soluções pontuais, para casos mais agudos e graves. No entanto, sem que educação e sem cultura, é dificílimo controlar a mentira. A ignorância é o terreno fértil para a manipulação e é contra ela que devemos lutar.
JC - O que a recepção ao livro, pelos leitores e pelo mundo jurídico, faz refletir, após uma década?
Andrea Pachá - Percebi que há uma imensa curiosidade pela atuação da Justiça, quando os amores acabam. Qualquer ser humano já viveu, vive ou conhece alguém que já lidou com processos envolvendo ex-casais.A escrita das crônicas foi uma expressão genuína da angústia que a impotência traz a uma juíza que precisa lidar com questões objetivas, sem desconsiderar os sentimentos e a irracionalidade que costumam surgir nas rupturas.
JC - Qual a função da escrita pra você, que também publicou livros como “Segredo de Justiça”, “Velhos são os outros” e “Sobre feminismos”?
Andrea Pachá - Escrever sempre foi a maneira que encontrei de tentar entender o mundo, suas complexidades e contradições. A década que passou, no entanto, foi impactada por tantas mudanças, irracionalidades e intolerâncias, que até mesmo a palavra faltou.
JC - O mundo passa por tempos difíceis em diversos aspectos. Qual a sua visão da realidade brasileira atual, depois da agonia da pandemia e do crescimento da radicalização política que invadiu os ambientes familiares e de relações de amizade?
Andrea Pachá - Tem sido muito doloroso viver esse momento. Parece que saímos de um período de nervos expostos e feridas em carne viva, para iniciar um momento de cicatrização, retomada do convívio social de forma respeitosa e racional. Ninguém aguenta viver em ambientes de ódio, com comprometimento da saúde mental. Nosso compromisso depois de tanta tristeza e desconstrução deve ser com a vida, essa potência que, mesmo injusta, nos trouxe até aqui.
JC - Parece haver um desequilíbrio, não apenas no Brasil, entre o compromisso das instituições com os valores democráticos e o compromisso de parcelas expressivas das populações com as instituições. Neste cenário, como a Sra. observou um evento como o de 8 de janeiro nas sedes dos Três Poderes, em Brasília?
Andrea Pachá - O que assistimos no 8 de janeiro foi resultado do fortalecimento de grupos extremistas, cujo objetivo é silenciar as diferenças e se impor pela força. Estivemos na iminência de um banho de sangue no Brasil, um país que, mesmo com tantas dificuldades e desigualdades tem conseguido sobreviver à intolerância e ao arbítrio. Felizmente, assistimos também as reações da sociedade e das instituições que não se curvam ao totalitarismo. Democracia dá trabalho, faz barulho, mas ainda é o melhor sistema que inventamos para a vida em grupo.
JC - A senhora tomou posse como desembargadora durante a pandemia. Qual o maior desafio na busca por direitos e por uma justiça democrática em nosso país?
Andrea Pachá - O maior direito, passados 35 anos da promulgação da Constituição mais democrática que já tivemos, é garantir o acesso à justiça, e tornar efetivos os direitos fundamentais, em um país que continua profundamente desigual.
JC - A população brasileira está envelhecendo, segundo os dados e as estimativas demográficas para as próximas décadas. Do ponto de vista do direito dos idosos, onde precisamos chegar? Há preconceitos a serem quebrados?
Andrea Pachá - A vulnerabilidade dos idosos deveria ser enfrentada por políticas públicas essenciais de moradia, mobilidade, previdência, entre tantas outras necessárias. O preconceito decorre do utilitarismo: quem não produz e não consome, é descartável na nossa sociedade. Envelhecer, a menos que desejemos morrer jovens, é uma condição natural da vida.Deveríamos olhar para a velhice de forma mais generosa, respeitadora e acolhedora.
JC - E para as mulheres, por que é importante a ampliação das conquistas feministas, numa sociedade como a nossa?
Andrea Pachá - Não há democracia ou liberdade em uma sociedade que não seja equalitária. Chega a ser ridículo, no século XXI, continuarmos aprisionados na estrutura machista que tanto mal nos faz. Enquanto não vencermos esse câncer do preconceito e da discriminação, seguiremos condenados à escalada da violência contra a mulher, sintoma mais aparente do ódio e da desigualdade de gênero que precisa ser exterminada.
JC - Como seu gosto pela literatura se encontra com a sua atividade jurídica? A literatura pode contribuir de que maneira para um país mais justo?
Andrea Pachá - Nem imagino que tipo de magistrada eu seria, sem a literatura. Na literatura, aprendi de forma mais íntegra o exercício da alteridade. Foi também na literatura que aprendi que não posso ser juíza moral de ninguém, que preciso enxergar o outro com suas precariedades, contradições e complexidades. Sempre digo aos magistrados novos na carreira que sem a literatura é impossível ser um bom juiz.
Lançamento do livro - “A vida não é justa”
Edição comemorativa de 10 anos da obra, de Andréa Pachá
Na Livraria Leitura do Riomar Shopping
Terça-feira, 28/2, às 19h