Nos últimos tempos, a produção literária - assim como as demais linguagens artísticas - tem buscado fazer uma certa "justiça" com figuras dissidentes, que fogem dos padrões de heteronormatividade e branquitude, muitas vezes esquecidas pela historiografia. É o caso de "Pernalonga: Uma sinfonia inacabada" (Cepe Editora, 198 páginas), primeiro título do jornalista Márcio Bastos.
O livro é uma biografia de Antonio Roberto de Lira França (1959-2000), um homem gay, nascido em Olinda, de origem humilde e soropositivo que marcou a cena teatral pernambucana a partir da década de 1970, em plena ditadura militar, como ator, dançarino, ativista e arte-educador.
O lançamento ocorre na XIV Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, nesta sexta-feira (13), às 19h, no Auditório Círculo das Ideias. O autor participará de uma mesa ao lado de Rosângela Lira (irmã de Pernalonga) com mediação do jornalista e pesquisador teatral Leidson Ferraz.
Legado
"Pernalonga", como era conhecido (uma referência ao personagem infantil da Warner Bros, que 'fluía' entre os gêneros em cenas para enganar seus rivais), deixou todo um legado de liberdade sexual, política e social para Pernambuco. Um legado até então inexplorado pela bibliografia - como ocorre com tantas outras figuras dissidentes.
"Pernalonga é uma figura que habita o imaginário cultural, especialmente ligado às artes cênicas, mas o que conhecemos de fato? É uma trajetória tão complexa que o meu maior desafio foi descobrir mais sobre esse artista, essa pessoa que movimentou tanto a nossa cultura", diz Márcio Bastos, que cobriu teatro neste Jornal do Commércio.
"Existem algumas figuras que marcam a vida de um lugar. Penso muito que Pernalonga se tornou um sinônimo de Olinda, assim como Miró da Muribeca habitava a Boa Vista, no Recife. É a primeira vez que temos algo documentado sobre a trajetória dele. No começo, tive até dificuldade para encontrar informações, pois era tudo muito raso. Contei com pesquisa em arquivo, acervo pessoal de familiares e entrevistas. A sensação é de que a gente consegue se aproximar um pouco do que foi Pernalonga. Desvendar o que ele foi é difícil, pois foi uma figura muito complexa. É uma figura fascinante, cheia de enigmas."
Teatro
Pernalonga é um dos nomes mais citados quando se fala do Grupo de Teatro Vivencial Diversiones, que revolucionou a cena teatral pernambucana nos anos 1970. A obra, inclusive, acaba fazendo um certo passeio por essa cena teatral tão rica no Grande Recife - o que contrasta com um momento em que a cidade perde espaços teatrais.
"Até me surpreendi, pois a pesquisa mostra como nossos hábitos culturais mudaram. Quando Pernalonga atuou no Vivencial de forma mais intensa, a questão do teatro era absurda. As programações tinham muitas peças, de terça a domingo, em vários pontos da cidade. O Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP) funcionava como uma instituição mais tradicional, mas haviam muitos grupos em Olinda, na Cidade Alta, com jovens sem recursos em um movimento de contracultura. Pernalonga foi um menino pobre de Amaro Branco que conseguiu cavar um espaço naquele grupo de pessoas", explica o autor.
Contudo, Bastos ressalta que o biografado foi muito além do grupo Vivencial. Ele protagonizou peças como "7 Fôlegos", escrita por Jomard Muniz de Britto; "O Homem da Vaca e o Poder da Fortuna" e "Chico Rei", ambas do grupo Teatro Ambiente do MAC, e recebeu o Troféu Espontâneo de Melhor Ator Coadjuvante. "Ele tentou circular, ganhou prêmios muito jovens. Tinha um ímpeto de criar. Não se contentava. Nunca quis viver do legado do Vivencial. Estava sempre atrás da próxima coisa, da próxima peça."
Ativismo
Pernalonga foi diagnosticado com HIV no final dos anos 1980, durante o ápice da crise da AIDS no mundo, embora nunca tenha chegado a desenvolver a AIDS. Apesar disso, perdeu o seu companheiro para a doença. "Em tempos em que não havia medicamento, ele foi convidado para campanhas de conscientização e tentou mostrar que existia um outro rumo para quem vivia com HIV", diz Márcio.
"Em meio a uma sequência de mortes, Pernalonga vibrava a vida. Era uma pessoa que tinha essa vivacidade. Ninguém tem uma imagem lúgubre ou triste dele. O ator teve um papel muito importante no ativismo contra esse preconceito, tanto para a comunidade LGBTQIA+, quanto para pessoas vivendo com HIV. Se ele fosse do eixo Rio-São Paulo, seria considerado hoje uma das grandes referências LGBTs do país."
Apesar da luta contra a ignorância, o artista foi uma vítima do preconceito, como comenta o autor. "Existem várias versões sobre a morte: uma facada, um assalto... ninguém sabe ao certo o que causou um corte no seu corpo. O que se sabe é que ele sangrou por horas, pedindo socorro. Era tarde da noite e muitas pessoas ouviram, mas tiveram medo de ajudar porque ele vivia com HIV. Estamos falando do ano de 2000. Pernalonga morreu de preconceito", crava.
Inspiração
Márcio Bastos torce para que o livro sirva como uma fagulha para mais pesquisas sobre o biografado e tantas outras figuras que merecem ser resgatadas. "Quero ver dissertações sobre Pernalonga. Sonho em ler um grande livro sobre Lolita, travesti que vivia pelo Bairro do Recife e que conheci durante as pesquisas para esse livro. Acho que quando resgatamos uma figuras como essas, proporcionamos todo um entendimento do que nossa a cena produziu, apesar de todas as dificuldades."
SERVIÇO
Lançamento do livro "Pernalonga: Uma sinfonia inacabada" (Cepe Editora)
Onde: Auditório do Círculo das Ideias - XIV Bienal Internacional do Livro de Pernambuco
Quando: sexta-feira (13), às 19h
Preço do livro: R$ 50,00 e R$ 20,00 (E-book)