Por que festivais estão sendo cancelados no Recife? Entenda a crise que aflige o setor

Mercado passa por adaptação após queda na demanda por ingressos, aumento de preços de produção e grades pouco atrativas nos eventos mais comerciais

Publicado em 29/08/2024 às 18:11 | Atualizado em 30/08/2024 às 8:45

O cancelamento da edição de 2024 do WeeHoo Festival, que seria realizado no dia 12 de outubro, no Recife, integra um contexto de crise do setor que se alastra pelo País e até pelo mundo.

Um levantamento feito pelo Mapa dos Festivais mostrou que, até a primeira quinzena de maio deste ano, 18 festivais de música alteraram suas datas de realização no Brasil. Desses, oito foram cancelados, nove adiados e um festival teve 1 dos seus 2 dias de evento cancelado.

O fenômeno já mostrou outros efeitos em Pernambuco. No final de semana passado, o Turá Festival chamou atenção pela baixa adesão do público, tendo de trocar a área externa do Centro de Convenções para o Classic Hall, um espaço bem menor.

Em julho, o Festival Rock Remembers foi cancelado um dia antes de sua realização. Já o Recife Trap se fundiu com o Funk Rec Festival, ocorrido no último domingo (25), para evitar um cancelamento.

O que está acontecendo com os festivais de música?

Fontes ouvidas pela reportagem apontam alguns motivos para tantos cancelamentos, adiamentos e esvaziamentos. O primeiro deles é que a demanda imediata por festivais do pós-pandemia cessou.

Junto a isso, os preços para produção, logística e cachês aumentaram consideravelmente nos últimos anos, o que também elevou os preços dos ingressos. Em contrapartida, o público tem sido cada vez mais criterioso em como irá gastar o seu dinheiro.

LARA VALENÇA/DIVULGAÇÃO
Festival Weeho, no Recife - LARA VALENÇA/DIVULGAÇÃO
CHARLES JOHNSON/DIVULGAÇÃO
Festival Weeho, no Recife - CHARLES JOHNSON/DIVULGAÇÃO

"O mercado está passando por um ajuste. Teve esse 'boom' logo após a pandemia, o que atraiu muitos investimentos de quem viu o festival como negócio. Agora, existe uma oferta maior de festivais, mas os preços estão muito inflacionados, tanto para a produção quanto para o público. Está tudo muito caro para consumir", diz o curador Guilherme Moura.

"Acredito que essa euforia que houve na volta dos eventos fez com que surgissem no mercado várias produtoras que tentaram capturar esse nicho, mas agora elas estão entendendo que esse não é um mercado tão fácil. É preciso ter um entendimento. O Recife é uma cidade com suas particularidades."

Falta de diversidade de atrações

Na repercussão desses cancelamentos e esvaziamentos do Recife, um fator bastante apontado pelo próprio público foi a falta de variedade nas programações. "Há três anos, já tínhamos essa sensação de que tudo estava muito repetitivo. Os headliners eram os mesmos em todos os eventos", comenta Ana Garcia, diretora do No Ar Coquetel Molotov, que realizará a sua 22ª edição neste ano, em 7 de dezembro.

"O Recife tem uma questão particular em relação a isso. O nosso Carnaval público mudou muito a programação nos últimos anos. Conseguimos assistir artistas grandes, com perfis de festivais, gratuitamente em palcos. Pernambuco no geral tem muitos festivais gratuitos, como o de Garanhuns. A curadoria desses eventos dialoga muito com esses festivais de música privados. É preciso pensar para fazer uma programação aqui", complementa.

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FBC no festival No Ar Coquetel Molotov 2023, no Recife - hnnhcrvlh
Ariel Martini
Festival No Ar Coquetel Molotov 2023, no Recife - Ariel Martini

Garcia ressalta que o Coquetel Molotov, como um festival independente e de fomento para a cena musical, conseguiu entender o percurso do mercado e fazer adaptações. "Procuramos outras alternativas, criando ações mais sociais e buscando inscrever em leis de incentivo. O Coquetel sempre foi conhecido por ser mais nichado e é isso que deveríamos voltar a fazer. Vender ingresso é difícil. A classe trabalhadora está sem grana", explica.

"Acho que nesse mercado existem aventureiros que surgem, fazem uma ou duas edições, e percebem que não dá para ganhar grana com isso. Não que seja o caso dos eventos de agora, mas fazer cultura nesse país é difícil. Tem que amar muito para fazer e encontrar um caminho sustentável", diz. "Ao mesmo tempo, lamento muito. Fiquei super ansiosa com os cancelamentos. Não queremos nenhum festival cancelado. É como se ficasse ainda mais evidente a crise que estamos vivendo."

Desafio do Nordeste

Se o cenário é difícil em todo o País, regiões como o Nordeste sofrem com um agravamento por questões como patrocínio e logística. "Encontramos uma concentração desses patrocínios no Sudeste. Isso piora ainda mais a situação de projetos no Nordeste", diz Ana Morena, diretora do Festival DoSol, realizado há 20 anos em Natal (RN).

"Acredito que os projetos que já nasceram grandes após a pandemia perceberam que esse modelo não é sustentável. Não houve um retorno esperado de vendas de ingressos. Apesar disso, os festivais que já estão funcionando na região há mais tempo e se desenvolveram juntos com as suas localidades conseguem ser mais maleáveis", explica.

"Os festivais independentes aumentam e diminuem de acordo com a realidade, pois têm responsabilidade com a continuidade. Às vezes, dão uma resumida nos dias, muda-se um pouco de formato. Isso é diferente de um projeto que chega imenso, com uma finalidade mais comercial."

Morena diz que é pela responsabilidade com a continuidade que o DoSol terá a sua 21ª edição neste ano, em 30 de novembro. "Está muito difícil para todos, principalmente para os independentes, que são focados na localidade, na formação de plateia e de artistas que estão lançando coisas. De 2007 para cá, a última edição foi a que tive mais dificuldade. Está tudo muito caro e não se está vendendo ingressos. Precisamos de projetos mais acessíveis, de democratização, levando-nos a lugares mais centrais."

Wehoo

A programação do Wehoo 2024 tinha atrações como Alceu Valença, Elba Ramalho e Geraldo Azevedo com o projeto "O Grande Encontro", Jão, Duda Beat, Falcão, Rachel Reis, Chico César com participação de Barro, TZ da Coronel, Major RD, The Wailers, Duquesa, Lamparina, Banda Uó, Francisco el Hombre, Barromeo, Black Alien, Gabe, Eli Wasa, D-Nox, Antdot, Valentina Luz e Madeja.

"É com o coração apertado e um profundo senso de responsabilidade que anunciamos o adiamento da edição 2024 do Wehoo Festival. Tomar essa decisão foi doloroso, mas necessário. Às vezes, é preciso recuar para ganhar impulso e voltar mais fortes", diz a nota.

"Vivemos tempos difíceis no show business, e realizar o festival deste ano da maneira que o nosso público merece e espera, com toda a grandiosidade e emoção que nos definem, não seria possível este ano. O Wehoo é mais que um festival; é parte da nossa história, da nossa cultura, e sempre queremos oferecer o melhor para o nosso público", completa.

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