Daniela Mercury: 'Nordeste perde mais do que ganha fazendo rixa'. Leia a entrevista

De volta ao Recife neste sábado (5), baiana lançará o primeiro MTG do axé: "O que se chama de música eletrônica, chamo de música visceral"

Publicado em 04/10/2024 às 17:52 | Atualizado em 05/10/2024 às 8:32

Daniela Mercury levou o axé music para todo o Brasil com "O Canto da Cidade" (1992), experimentou com a música eletrônica em "Carnaval Eletrônico" (2004) e agora está prestes a lançar um MTG, espécie de remix do funk carioca que tem viralizado nas redes, de "Nobre Vagabundo". Daniela é "antropofágica", para usar a mesma palavra com que ela descreve a cidade de Salvador (BA). "Somos tradição e invenção", diz, em entrevista ao JC.

Ainda no ritmo das comemorações de seus 40 anos de carreira, a baiana volta ao Recife neste sábado (5) para show nos 12 anos da Odara Ôdesce, festa de música brasileira que ocorre no Terminal Marítimo, a partir das 16h. "É uma festa que tem uma posição política dentro da cidade e isso tem a ver comigo. Tenho um DNA de artista que faz arte muito conectada com a realidade."

Ao longo da entrevista, compartilhou reflexões sobre a conexão entre sua carreira e a cultura pernambucana, a evolução do Carnaval de Salvador e as transformações nos ritmos que permeiam a música brasileira. "O que se chama de música eletrônica, chamo de música visceral."

Entrevista - Daniela Mercury

Os seus 40 anos de carreira são marcados por muitas vindas ao Recife. Você lembra como era a relação com a cidade no começo da sua carreira?
Minha carreira se definiu em um diálogo com Pernambuco, onde comecei a fazer shows nos municípios próximos do interior da Bahia. Logo em seguida veio o Recife, quando fiz os primeiros carnavais fora de época em Boa Viagem (o Recifolia). Sou uma artista do Carnaval e o Carnaval da Bahia tem certa influência de Pernambuco, pela própria essência do frevo. Essas fronteiras geográficas não somos nós artistas que criamos; a gente entrelaça e quebra fronteiras. Amo o Alceu, o Chico Science, que já regravei. Da nova geração, gosto do Martins. Sou um pouco de Pernambuco também, pois estou sempre conectada. Mesmo não vivendo aí, minha arte está muito presente.

O carnaval, como uma festa popular, vem passando por transformações em todo o Brasil. O Carnaval de Salvador já não é o mesmo da década de 1990, no 'boom' da axé music. Como você encara essas mudanças?
Salvador é antropofágica; somos tradição e invenção. Vocês (de Pernambuco) fizeram a escolha de uma festa que faz uma manutenção da tradição, que é a cultura popular, mais especificamente pernambucana. Eu não sei se é porque nós somos essa península (risos), mas acabamos misturando tudo. O nosso carnaval é feito por artistas urbanos e pop que trouxeram essa constante transformação. O próprio axé music foi questionado como ritmo brasileiro por ter influência estrangeira, sendo uma música urbana que traz influência de todo lugar do mundo. Mudanças são naturais, mas o que me preocupa é a continuação do respeito a tudo o que é valioso em termos de cultura. Não podemos deixar de valorizar os grandes mestres, de patrociná-los e de fazer a manutenção do que é valioso culturalmente. Salvador tem conseguido fazer museus e se modernizar ao mesmo tempo, buscando a manutenção da memória.

O frevo elétrico, que demonstra esse diálogo entre Pernambuco e Bahia, é menos presente no Carnaval de Salvador hoje.
Quando eu regravei "Banzeiro", de Dona Onete, resgatei um frevo, pois vi que não se estava mais executando tantos frevos em Salvador, exceto pelas gerações anteriores a minha. Também canto "Monumento Vivo". Sou uma das artistas que mais tem tido cuidado para pescar a memória e as tradições que estão se perdendo, chamando atenção para a valorização de Armandinho, Dodô e Osmar, de cantar os blocos afros. São músicas de um determinado período que fizeram sucesso e rapidamente foram substituídas por outros ritmos, como a lambada. Eu persisti lutando pelo samba-reggae, pois sabia que era uma invenção muito valiosa. Fiz isso tudo dentro das minhas possibilidades como artista. Sempre tive cuidado em chamar atenção para a tradição, mesmo renovando o meu trabalho.

Ainda sobre carnaval: no começo do ano, as redes sociais foram tomadas por uma rixa entre os carnavais do Recife e de Salvador. Você acompanhou?
Não ganhamos nada fazendo rixa. A gente perde mais do que ganha. É como discutir quem é mais importante na diversidade, quando sabemos que a diversidade é riqueza para todos nós. Acredito que exista uma disputa de mídia, de propaganda, de mercado, mas, quem é mais importante culturalmente? Não tenho essa necessidade. É algo mais destrutivo, pois a cultura não se divide; ela soma. Acho que essa rixa seja uma perspectiva capitalista demais para absorvermos. Não que eu não goste do capitalismo, mas esse não é o papel dos artistas. O papel do artista é de inclusão, de acolhimento. Quem sou eu sem a arte de Pernambuco?

Durante apresentação no Dia Brasil do Rock in Rio, você apresentou uma versão MTG de 'Nobre Vagabundo'. Após tantas experimentações, chegou a hora de dialogar com o funk do Rio de Janeiro?
Estamos muito intricados. Eu vejo muita baianidade na música do Rio e muita influência do axé no funk. O MTG ficou divertido, foi uma forma de reverenciar esses artistas que estão inventando essas bases gostosas. O que se chama de música eletrônica, chamo de músicas viscerais. Para mim, é assim. Não importa se elas têm uma sonoridade eletrônica, pois vêm do corpo, do povo dançando. Elas nascem como dança para se tornarem ritmos. Eu acho a dança carioca genial... aqueles passinhos com o chinelo. Com "Rapunzel", gravamos galopes com timbaus e sinto que os timbaus são inspiração para o funk, que tem uma batida dos terreiros. São muitas influências que ninguém pode tomar para si; são criações coletivas. A música do Léo Santana hoje tem um groove arrastado, totalmente em diálogo com Ludmilla e Anitta, por exemplo.

Em quais outros gêneros você vê essa "baianidade"?
Vejo no sertanejo também as batidas baianas. Lógico que alguns deles são baianos, mas ouço melodias nordestinas. Produzimos aqui uma música brasileira muito poderosa e temos uma indústria de música pop bastante viva, forte e grandiosa em muitos aspectos. Vemos música brasileira em destaque nas plataformas de música, o que é incrível, pois o mundo está mudando muito rapidamente e isso mostra a força criativa, a capacidade que temos. A música brasileira ainda é brasileira nas suas rítmicas. Já tivemos fases até de gêneros não originalmente brasileiros, mas que se tornaram vertentes brasileiras pela poesia e pela melodia.

Como enxerga o futuro da nossa música e dos carnavais?
A nossa música rítmica, nordestina ou carioca, é predominantemente dos carnavais. Os carnavais vão ser cada vez mais espaço para contratação, existência e viabilização de artistas, provocando uma multiplicação dos carnavais do Brasil, que é uma época em que a gente tem uma identidade muito forte. É muito natural que surjam novas festas, dando espaço para novas vertentes musicais, fusões novas. Isso é maravilhoso, porque o Brasil é assim: diverso, rico. Vejo tudo com otimismo, incentivando a criação de mais músicas e trabalhos da música brasileira, com mais artistas vivendo e fazendo música no Brasil.

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