'Deu medo de macular o que já havia sido feito', diz Matheus Nachtergaele sobre 'O Auto da Compadecida 2'

'João Grilo está mais arrojado, maduro e perigoso', opina ator em entrevista ao JC; Longa-metragem estreia nos cinemas neste Natal (25)

Publicado em 24/12/2024 às 16:34 | Atualizado em 24/12/2024 às 20:44
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Nenhum personagem de Matheus Nachtergaele é tão popular ou amado como João Grilo, eternizado pelo sucesso "O Auto da Compadecida" (2000). E quem diz isso é o próprio ator:

"Eu considero que João Grilo e Chicó vivem no imaginário brasileiro da mesma forma que Emília do Sítio do Picapau Amarelo, o Saci Pererê e o Curupira. Eles foram alçados a uma categoria quase mítica", disse em entrevista ao JC. O longa estreia nos cinemas brasileiro neste Natal (25).

"É óbvio que deu medo de macular, de alguma forma, o que já havia sido feito. Mas o resultado não foi esse. Homenageamos o que existia, trazendo novos aspectos para esses arquétipos e, principalmente, fizemos um filme que não é exatamente um filme: é uma festa, um festejo, como são os autos".

No enredo, Grilo retorna à cidade de Taperoá com ares messiânicos por ter "ressuscitado". Aproveitando a fama, ele cria um arriscado jogo duplo com Ernani (Humberto Martins), um coronel em decadência, e Arlindo (Eduardo Sterblitch), um radialista oportunista que manipula a opinião pública. Ambos têm ambições políticas: "João Grilo está mais arrojado, maduro e perigoso".

Entrevista - Matheus Nachtergaele

João Grilo se envolve em conflitos ainda mais complexos no "Auto da Compadecida 2". Você diria que o personagem está mais sagaz?
Acho que ele está mais inteligente, mais experiente e, apesar de ser um arquétipo — ou seja, há algo imóvel nos arquétipos —, ele representa uma tradição de personagens Ícaros do mundo inteiro, que são sempre os pobres sobreviventes, espertos, que, apesar de toda opressão e de toda a desigualdade social, não perdem o gosto pela vida, não perdem a fé.

João Grilo é uma figura amoral, mas que basicamente precisa comer; ele precisa da próxima refeição, como quase todos os seres humanos na Terra que ganham sua vida um dia de cada vez. E não é necessário ser tão pobre assim para entender o que estou dizendo. Todos estamos presos em uma grande cadeia de injustiças que nos fazem trabalhar demais.

O João Grilo tenta ganhar a vida de maneira mais fácil, aplicando golpes. Ele é um Robin Hood que nos vinga desse mau destino de ter nascido em um mundo injusto. Mas o Grilo avançou no tempo e passou por mais experiências. Eu sou outra pessoa, e o arquétipo se deita no corpo mais experiente: com menos agilidade física, mas mais agilidade mental.

O primeiro "Auto" trazia uma acidez na retratação de instituições como casamento e igreja. Acredita que agora a principal instituição parodiada seja o poder político
Vinte e cinco anos se passaram, e os poderes se travestem ao longo do tempo com novas roupagens. Se, no primeiro Auto, o de Ariano, o poder podia estar representado pelo mau patrão — o padeiro e sua mulher —, pelo clero corrupto, com o padre e o bispo, pela violência cangaceira, pelo coronelismo e pela propriedade privada, aqui ele dá um pequeno passo além.

Ainda há a pressão da propriedade privada de coronéis decadentes que querem entrar para a política. Estamos nos anos 1950, mas também falando do aqui e agora. O poder das mídias também entra em cena, e João Grilo vai precisar dar voltas um pouco menos ingênuas.

LAURA CAMPANELLA/DIVULGAÇÃO
Chicó (Selton Mello) e João Grilo (Matheus Nachtergaele) em 'O Auto da Compadecida 2' - LAURA CAMPANELLA/DIVULGAÇÃO
LAURA CAMPANELLA
Matheus Nachtergaele e Selton Mello caracterizados para O Auto da Compadecida 2 - LAURA CAMPANELLA

Agora, não se trata apenas de garantir a próxima refeição. Trata-se de tentar ganhar poder político, de aproveitar sua fama. E aí entra a metáfora de sua fama como o homem que reviveu. Não é apenas sobre comer; é sobre ascender politicamente e usar a visibilidade conquistada.

É claro que haverá desdobramentos e mil coisas a acontecer. De propósito, não vou contar como isso acaba, mas acredito que o golpe do Grilo está mais arrojado, mais maduro, e ainda mais perigoso.

No "Auto 2", você interpreta Jesus e o Diabo no julgamento final. Como foi fazer esse desdobramento?
O bem e o mal moram dentro da gente. Um Auto precisa das figuras que representam a religiosidade do homem sertanejo, como no caso da peça, com Jesus, Maria e o diabo. No Auto 2, vamos ver um avanço na forma como se representa o bem e o mal.

Como ator, foi uma oportunidade incrível de desdobrar o personagem em três figuras diferentes. Como exercício de atuação, foi genial. E, como resultado, deixou o Auto 2 mais arrojado. Eu achei um verdadeiro gol.

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Chicó (Selton Mello) e Enrique Diaz (Joaquim Brejeiro) em 'O Auto da Compadecida 2' - LAURA CAMPANELLA/DIVULGAÇÃO
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Arlindo (Eduardo Sterblitch) em 'O Auto da Compadecida 2' - LAURA CAMPANELLA/DIVULGAÇÃO

Ao mesmo tempo, os deuses, o próprio Deus, vão mudando de interesse e endereço conforme a humanidade avança. De certa maneira, não seria mais possível repetir o julgamento como no Auto original. Haverá o julgamento, sim, mas de uma forma diferente, mais elaborada e com uma homenagem ao próprio Auto.

Eu achei muito bonito. É parecido com o teatro clássico, tem as batidas de Molière - os sons que o Grilo ouve antes de começar o julgamento, que remetem a uma tradição do teatro europeu.

Considera que voltar a João Grilo foi como um reencontro natural ou uma missão?
Foi uma grande oportunidade para mim viver esse personagem, que é um dos nossos mais populares. Tanto eu quanto Selton Mello temos uma obra extensa, seja na TV, no teatro ou, principalmente, no cinema. Mas nenhum personagem nosso é tão amado quanto João Grilo e o Chicó.

É um desafio, dá um frio na barriga, mas, ao mesmo tempo, é uma oportunidade de reencarnarmos os nossos próprios palhaços e matarmos a saudade da dupla. Eles estavam com saudades um do outro, assim como o público estava com saudade deles.

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João Grilo (Matheus Nachtergaele) e Chicó (Selton Mello) em 'O Auto da Compadecida 2' - LAURA CAMPANELLA/DIVULGAÇÃO

Esse personagens foram alçados a uma categoria quase mítica. Eu considero que João Grilo e Chicó vivem no imaginário brasileiro da mesma forma que Emília do Sítio do Picapau Amarelo, o Saci Pererê e o Curupira.

Acho que todo brasileiro, mesmo jovem, já viu o Auto da Compadecida completo ou em pedaços. Portanto, eles são formadores de nossa identidade enquanto brasileiros, são peças culturais fundamentais.

É óbvio que deu medo voltar a esses personagens e, de alguma forma, macular o que já havia sido feito. Mas o resultado não foi esse. Homenageamos o que existia, trazendo novos aspectos para esses arquétipos e, principalmente, fizemos um filme que não é exatamente um filme: é uma festa, um festejo, como são os altos.

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