Marquei entrevista com Riachão no tradicional Hotel da Bahia, no Campo Grande . O cara era uma figura mítica. Com fama de brigão. Numa foto que vi num jornal de Salvador, ele usava um boné, desses usados na Europa, um lenço no pescoço, os dedos cheios de anéis. Chegou para a entrevista ainda mais estiloso. Japona vermelha, um cachecol (em pleno verão baiano) boné, com todos os anéis. Mas simpático, sorridente, falante,com jeito e ginga de personagem de Jorge Amado, de quem foi amigo. A malandragem e a boêmia diz ter abandonado:
“Não faço mais farra porque a cidade não merece mais a confiança de você estar no meio. Malandragem não tem mais. O malandro levava alegria pro povo. O que tem hoje é vagabundo, roubando, tirando seu sossego”, dispara. Recém-chegado da França, Riachão, contou que havia cantado em Cuba, e lamentava não conhecer o Nordeste: “Cantei uma vez em Aracaju. Gostaria de ir no Recife, mas nunca me convidaram para cantar lá” (ele participaria do Rec-Beat no ano seguinte. A entrevista foi em 2008, durante o festival PercPan).
Clementino Rodrigues, o Riachão, falecido nessa segunda-feira, aos 98 anos (faria 99 em novembro), de causas naturai, era uma lenda e um mistério baiano. Lenda por ser último remanescente de uma geração de artistas do rádio, que deu compositores populares do nível Batatinha e Gordurinha. Mistério porque gravou muito pouco, e era bem menos badalado na Bahia do que merecia. provavelmente porque nunca fez parte de panelinhas. Ou porque tem o hábito de revelar o que pensa (não escondeu, por exemplo, que não gostava da axé).
Riachão é o autor de Cada macaco no seu galho, megasucesso de Caetano Veloso e Gilberto Gil, em 1972. Cássia Eller gravou dele Vai morar com o diabo. Sucessos, no entanto, que pouco alteraram a rotina deste soteropolitano do bairro do Garcia (onde morou até o fim da vida). Riachão era sambista inspirado, cantor que dividia frases com a precisão de um Jackson do Pandeiro. Jackson foi, aliás, o primeiro cantor que o gravou.
“A Rádio Sociedade era o que distraía a Boa Terra. Armava não sei quantos programas inclusive uma queima de Judas. Numa queima de Judas dessas estava a dupla Jackson e Almira, que já eram famosos no Rio, mas que eu não conhecia pessoalmente. Se tratava de uma passeata, que saía do Campo Grande para a Praça da Sé. Quando estou em cima do caminhão cantando Judas Traidor com um parceiro (canta o samba inteiro, tamborilando com os dedos na mesa de centro). Almira e Jackson iam no caminhão, aprenderam a música rápido, de repente só vejo os dois cantando em dueto com a gente. Veio daí nossa amizade. Ele gravou Meu patrão, Saia Rota, e Judas traidor”, relembra Riachão.
O apelido vem de um episódio que não gosta de recordar, uma refrega, de faca, com um colega de farra: “Hoje só quero saber de amor, alegria. Mas fui uma criança que brigou muito, que tinha um sangue assim quente. Fui preso, quase que mato um companheiro, não gosto nem de lembrar”, desconversa. Ele começou, em 1944, a profissão de cantor (que dividia com a de alfaiate), na Rádio Sociedade da Bahia, cantando sucessos de Orlando Silva, Assis Valente, Ataulfo Alves, Wilson Batista. A composição lhe surgiu por acaso:
“Uma certa vez eu vinha comprar material de alfaiate na rua da Misericórdia. Quando eu vou passando, vejo um pedacinho de revista, com os dizeres: ‘Se o Rio não escrever, na Bahia ninguém canta’. Ora, eu só cantava as músicas do Rio. Quando li aquilo me bateu uma coisa, fiquei sentido, com aquilo no juízo, a tarde toda, a noite. Resultado: Jesus me manda o primeiro samba por causa disto (canta): ‘Eu sei que sou malandro sim/Conheço o meu proceder...’ Era assim o meu primeiro samba. Nunca foi gravado.
CAETANO E GIL
Composta nos anos 60, a inédita Cada macaco no seu galho foi descoberta por Caetano e Gil, acabados de voltar do exílio londrino. Quem indicou Riachão a eles foi um diretor do Bandeb (o Bandepe baiano), onde, graças a Antônio Carlos Magalhães, Riachão descolou um emprego de contínuo (conheciam-se do tempo em que ACM era jornalista). O doutor Gadelha, chefe do compositor, era pai de Dedé e Sandra, mulheres, respectivamente, de Caetano e Gil.
“Ele deixou um recado com meus colegas para eu ir numa reunião com esses artistas, mas não me deram o recado e eu não compareci. No sábado, de Carnaval, eu tomei umas cachaças e fui na casa deles no Rio Vermelho. O resultado: sentou todo mundo numa almofadas na sala, e haja eu a cantar meus sambas. Daqui a pouco estou cantando Cada macaco no seu galho. E aí eles disseram: é essa malandro, não tem outra. E foi um grande sucesso”, conta Riachão, que estima já ter feito quinhentas músicas, a maioria porém esquecida: “Eu era pra botar no gravador, mas nunca tive essa idéia. Não gravei, saiu da mente. Nem sei como tenho tanta música para o show”.
Riachão foi gravado pouco, pelo Trio Nordestino, Osvaldo Oliveira (forrozeiro paraense que lançou Vai morar com o diabo), mas se não fosse pela aposentadoria do banco hoje estaria em dificuldades financeiras: “É a minha sorte. Minha vida era brincar, cantar, não procurava conhecer as pessoas. Sempre fui assim”, diz o sambista (especialista em samba-de-roda do Recôncavo. Seus pais eram de Santo Amaro da Purificação)”, que esbanjava saúde, estava então com 83 anos bem vividos. Em 2002, ele gravou Humanenochum, produzido por Paquito e J.Velloso, o mais bem resolvido do cantor, com participações de Carlinhos Brown, Caetano Veloso, Tom Zé. Seu último disco foi Mundão de Ouro, de 2013. Riachão morreu sem realizar um projeto que queria lançar em 2020, antecipando-se ao seu centenário em 2021, um álbum de composições inéditas e que já tinha título: Se Deus quiser eu vou chegar aos 100