A inspiração artística pode vir das situações mais corriqueiras ou improváveis. Marcelo D2 começou a ter a ideia para o seu novo disco, "IBORU", quando viu o seu filho comendo rabada com a mão. "Ele cresceu na Zona Sul do Rio de Janeiro e estava comendo rabada com a mão. Isso é algo ancestral, que a gente faz e vê, mas nem sabe que sabe", disse o artista, em coletiva virtual com veículos do Recife em outubro.
A ancestralidade não saiu mais da cabeça do músico, fazendo-o chegar no samba para encontrar uma sonoridade nova. "O samba envolve religião, fé, comida, estilo de vida, tudo isso abriu uma porta gigantesca para mim", explica o artista - a palavra "comida", inclusive, apareceu diversas vezes na conversa.
O "IBORU, que sejam ouvidas nossas súplicas" une o grave do 808 (timbre de bateria eletrônica que foi pedra fundamental do rap) à cadência e a formação clássica do samba de terreiro, culminando em um "novo samba tradicional". O cantor levará o show do disco ao palco do 20º No Ar Coquetel Molotov, realizado no Campus da UFPE neste sábado (20).
Movimento
Além de 9º álbum do artista, esse projeto vai além e é descrito como um movimento artístico que envolve ainda cinema, artes plásticas, dança e audiovisual, com um curta ficcional que conta a história de um encontro entre os ainda jovens Pixinguinha, João da Baiana e Clementina de Jesus, em 1923.
"Nos últimos anos tenho me envolvido muito com o audiovisual e isso talvez tenha aberto mais o leque de ir atrás de uma pesquisa maior que apenas a música", refletiu o músico, após pergunta realizada pelo JC.
"Percebi que o grave que o rap propôs, o eletrônico, dominou a música pop. Toda música que você ouve, o sertanejo, a música pop americana, tudo tem um grave eletrônico. O samba demorou mais a abraçar isso. Eu resolvi fazer o disco por uma experiência, é uma experiência musical mesmo. É um disco experimental, de uma proposta de um novo samba tradicional. Eu amo o samba do Paulinho da Viola, do Zeca Pagodinho, do Martinho da Vila, mas eles têm o samba deles. Eu queria ter o meu samba."
Marcelo D2 faz, inclusive, um paralelo com as experimentações que a geração musical do Planet Hemp fez nos anos 1990, incluindo aí Chico Science e a Nação Zumbi. "Ninguém ouvia maracatu nos anos 1990 e o Chico resgatou isso. A gente, enquanto artista, procura essa união que vai gerar essa conexão com o público e com o que vai tocar as pessoas. Acho que tá na hora do samba ser reconhecido do jeito que ele tem que ser. O samba é uma música revolucionária, de tradição, que carrega tanta coisa."
Disco
Dividido em 3 atos, "IBORU" começa descortinando esse novo samba com faixas como "Povo de fé", "Até clarear", "Fonte que eu bebo" e "Só morro quando meu samba morrer". O segundo ato traz a ancestralidade para a cena contemporânea em duetos com Mateus Aleluia e Metá Metá. Já o terceiro e último ressalta a veia popular do samba, com parcerias de Alcione e Mumuzinho; e Zeca Pagodinho e Xande de Pilares.
O resultado tem dado uma epifania criativa ao artista. Aos 55 anos de idade e 30 de carreira, ele crava: "O IBORU reacendeu o meu amor por fazer música, sabe? Encontrar algo assim após 30 anos de carreira tem me deixado maluco. Não tenho dormido direito. Tem filme, artes plásticas, ocupação que fazemos todo dia".
A Ocupação IBORU, citada por ele, é uma experiência imersiva que tem ocupado alguns espaços com música, música eletrônica, pinturas, moda e gastronomia de terreiro, com curadoria de D2 e Luiza Machado.
"Chegou um momento que pensei que estava fazendo só música para vender. De 2013 a 2018, eu não lancei nada. Estava bem de saco cheio, cansado. Eu tinha visto uma loja em Los Angeles para abrir uma floricultura. Estava legalizando a maconha na Califórnia e pensei: 'vou viver aqui, vou fumar maconha e viver entre as flores. Isso era 2016", relembra.
Em 2017, após perder uma amiga em um latrocínio, o artista precisou recalcular a rota. Vieram os discos "AMAR é para os FORTES" (2018). "Ele mudou a minha visão de mercado, sobre a forma como eu podia me expressar", diz.
"Fiquei pensando sobre esse esquema, essa indústria. O que é que vale a pena? Alimentar uma indústria em que viramos escravos do algorítimo? Isso é propósito de vida? Eu tenho 55 anos. Não faço música para vender, é para tocar as pessoas. É lógico que eu quero vender. Não é esse papo de que 'socialista não pode ter Iphone', mas é que precisamos ter um propósito maior."
Após essa "virada de chave", D2 acredita que os próximos anos serão bastante frutíferos. "Preciso tirar uma férias também, estou exausto. Mas, fazer um álbum de samba me trouxe muitas possibilidades. Vamos ter anos de muitas coisas acontecendo. Vou falar que é a raiz de uma árvore que pode dar muitos frutos."