DÉFICIT HABITACIONAL

Recife vira cidade das ocupações, com aluguel caro, pobre sem renda e falta de política habitacional

Até 2019, 65% do déficit habitacional da Região Metropolitana do Recife correspondia a famílias que comprometeram mais de 30% da renda com o aluguel

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Lucas Moraes

Publicado em 24/10/2021 às 6:00
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Em todos os estratos, pagar aluguel para morar no Recife significa destinar boa parte da renda para a questão da habitação. Nos últimos 12 meses, a cidade acumulou a maior elevação no preço do aluguel, confirmando também um dos metros quadrados mais caros do País. Com pouca extensão territorial e alta concentração da oferta de imóveis em determinados bairros, a capital pernambucana, nesse quesito, vem equiparando o custo de vida a cidades como Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. A alta dos preços, que seguiu em ascensão durante a pandemia da covid-19, leva proprietários e inquilinos, nas classes média e alta, a renegociarem as contratações. Aos mais pobres, a questão desnuda a falta de políticas públicas habitacionais eficientes e aumenta o número de ocupações e moradias irregulares espalhadas pela cidade.

>>> Falta de infraestrutura, bairros seletos e pouca oferta: por que Recife tem um dos aluguéis mais caros do País?

Até 2019, 65% do déficit habitacional da Região Metropolitana do Recife correspondia a famílias que comprometeram mais de 30% da renda com o aluguel. Diante da pandemia, a percepção é de que o número só aumenta.

Em dados revisados da Fundação João Pinheiro, utilizados para embasar a elaboração de políticas públicas do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), entre 2016 e 2019, o déficit habitacional no Grande Recife passou de 112.250 para 113.275 unidades. Acompanhando as evoluções no Estado (246.898, em 2019) e no Nordeste (1.778.964, também em 2019). Até o ano anterior à pandemia, a variação do déficit foi relativamente pequena (0,9%), de 2016 a 2019; enquanto no mesmo período o ônus excessivo com o aluguel cresceu 4%, indo de 72.327 para 75.151 nos municípios do Grande Recife.

 

FILIPE JORDÃO/JC IMAGEM
O peso do aluguel no déficit habitacional. Edifício que estava abandonado na Av. Martins de Barros foi invadido por pessoas sem teto. - FILIPE JORDÃO/JC IMAGEM

“Tem vários fatores (para esse crescimento). O primeiro é a questão da renda. A situação da renda domiciliar tem apresentado oscilações, principalmente para baixo. Desde 2015, a renda tem caído, essa é uma questão do lado da demanda, com o crescimento do desemprego. Por outro lado, você tem, nos contratos formais, o peso da variação do IGP-M, que também teve na pandemia uma oscilação muito forte, para cima”, explica o coordenador da pesquisa da déficit habitacional da Fundação João Pinheiro, Frederico Poley.

Foto: Felipe Ribeiro/JC Imagem
Déficit habitacional no Recife - Foto: Felipe Ribeiro/JC Imagem

As duas questões, embora não sejam as únicas, são dominantes na explicação do descompasso entre o valor dos aluguéis e o acesso da população à locação dos imóveis. Além disso, distinguem bem os mais pobres - que geralmente acessam a locação pelo mercado informal e sentem o problema mais pelo lado da renda - das pessoas com maior poder aquisitivo, que não têm as contratações referenciadas pelo IGP-M mas ainda assim se deparam com o custo maior na busca por moradias alugadas.

“No caso do ônus excessivo que a gente calcula, esse ônus está concentrado principalmente nas famílias com até três salários mínimos, elas são as que mais facilmente comprometem 30% da renda com aluguel. Dessa parcela de até três, quase 2/3 são famílias que recebem apenas dois salários, quase 80% da parcela principal que vive com o ônus está em domicílios com renda muito baixa”, alerta Poley.

Mais vulneráveis, sem acesso ao judiciário, contratos formais e respaldo financeiro para garantir a moradia, essa parcela da população torna mais visível, em terrenos desocupados - sem função social, prédios e ruas, o impacto do ônus com a locação.

“Nossa percepção, por conta do agravamento da crise econômica, é de que muitas famílias estão com dificuldade de pagar seus aluguéis mesmo, em situações precárias. A gente percebe isso pelo número de ocupações que vêm surgindo na cidade, muitas pessoas que passaram a estar nessas novas (ocupações) têm esse histórico de não conseguirem mais pagar o aluguel”, afirma a Diretora Executiva Nacional do Habitat para a Humanidade Brasil, Socorro Leite.

Embora não haja um levantamento específico sobre o número de novas ocupações, bem como os motivos que levaram as pessoas a essa condição, a Prefeitura do Recife diz que esse é um problema nacional.

“Levantamento feito por mais de cem entidades e movimentos sociais na “Campanha Despejo Zero”, contra remoções durante a pandemia, mostrou que o número de famílias despejadas aumentou 340% no País entre agosto de 2020 e agosto de 2021. No Recife, a Prefeitura não tem sido autora desse tipo de ação judicial”, justifica.

Foto: Bobby Fabisak
Déficit habitacional no Recife - Foto: Bobby Fabisak

O mesmo levantamento, no entanto, aponta que Pernambuco é o terceiro estado em número de ameaças de despejo, com 9.299 famílias correndo risco de não ter onde morar. Além disso, 2.000 despejos foram registrados no Estado, colocando-o em destaque no ranking. O levantamento não traz recortes municipais.

Só na última semana, a PCR foi alvo de duas manifestações do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) por conta de ameaças de despejo e falta de habitações.

Em oito anos, de acordo com a prefeitura, a cidade recebeu 20 conjuntos habitacionais, com entrega de 2.667 novas unidades, beneficiando mais de 10 mil pessoas com as obras.

Porém a cidade segue com um “esqueletos” de moradias, totalizando em construção quatro conjuntos habitacionais, alguns deles com mais de dez anos de obras, totalizando de 1.528 unidades habitacionais (UHs). A cidade espera a entrada do Habitacional Encanta Moça I e II (Bode) - 600 UHs; Habitacional Vila Brasil I (Joana Bezerra) - 128 UHs, Habitacional Vila Brasil II - 320 UHs (Joana Bezerra), Pilar (Bairro do Recife) - 256 UHs - e Sérgio Loreto (São José) - 224 UHs.

Sobram problemas e não chegam soluções

Para reduzir o tamanho do déficit, especialistas apontam que é preciso pensar em soluções integradas que melhorem a qualidade de vida da população e demandam investimento direto do poder público, sem transferência da responsabilidade para a iniciativa privada.

“Não vejo Recife estruturando essa política (habitacional) de forma transparente, com programas estabelecidos e que gerem resposta em escala suficiente. Projetos pilotos precisam ganhar outra perspectiva, com investimento público direto, sem contrapartida. Temos um problema complexo que a prefeitura precisa encarar”, aponta Socorro Leite.

Segundo ela, falta priorização para a questão da habitação na cidade e mesmo quando tomadas iniciativas, elas seguem paliativas, sem dar conta do problema como um todo.

Foto: Bobby Fabisak
Déficit habitacional no Recife - Foto: Bobby Fabisak

“O programa recentemente lançado, de regularização fundiária, é muito pequeno. É preciso ter linhas programáticas mais propícias para a atração de recursos. A prefeitura anunciou recentemente um novo empréstimo com a Caixa, que será usado para infraestrutura viária. O que é mais urgente, fazer pontes ou casas? Isso acaba na verdade aumentando o déficit, com mais despejo”, alerta Leite.

De acordo com Poley, é preciso pensar na construção de habitações, locação social e também serviços de infraestrutura em toda a cidade. “Quando garante a infraestrutura, pode pensar até também no deslocamento dessa demanda, aumentando a oferta de habitação adequada, que pode gerar uma tendência de redução dos preços, com maior oferta adequada pela cidade”, defende.

Na questão da locação, a ação mais direta da prefeitura no repasse de recursos está no auxílio-moradia, hoje pago a 5.660 famílias, no valor de R$ 200 reais por mês. levando-se em conta essa única fonte para pagamento de aluguéis, subentende-se que essas pessoas agregam a conta do déficit qualitativo, conseguindo apenas acessar moradias precárias e gerando coabitação.

Na última quinta-feira, a prefeitura anunciou um novo programa voltado para a construção de habitações. Um pacote de benefícios fiscais oferecerá isenções de impostos e taxas municipais para a atividade das construtoras, especialmente, em relação a habitacionais de interesse social, que segundo a PCR serão beneficiadas. A prefeitura  A previsão é que mais de 8 mil empreendimentos residenciais saiam do papel até o fim de 2022 na cidade, reunindo aportes de mais de R$ 3 bilhões e gerando quase 20 mil novos postos de trabalho.

Outra ação ainda em espera vem do governo federal, com a locação social. Anunciada há um ano, dentro do Programa Casa Verde e Amarela, a medida busca a produção habitacional por meio de Parceria Público-Privada (PPP). Ainda em fase de definição, pelo MDR, o projeto piloto prevê o atendimento de famílias com renda mensal de até R$ 2 mil e outro grupo entre R$ 2 mil e R$ 4 mil, com acesso a imóveis com locação facilitada.

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