A espera de famílias que vivem em palafitas por habitacional que não atenderá déficit na Comunidade do Bode, no Recife
Problema crônico no Recife, déficit habitacional na comunidade supera a quantidade de 600 apartamentos previstos nos prédios Encanta Moça I e II, construídos no Complexo Aeroclube, no Pina. Famílias também reclamam de falta de transparência em relação a critérios de escolha
Casa, para Taciana Odete, nunca significou proteção e bem-estar. Entre as frestas da madeira que formam a palafita onde vive, é possível ver o mangue e os animais que nele habitam. Três ou quatro vezes, disse ela, a estrutura cedeu. Em uma delas, quando o piso do banheiro caiu, viu a maré quase levar a filha de seis anos, resgatada com rapidez pela tia. A família formada por ela e os três filhos é uma das centenas na Comunidade do Bode, no Pina, Zona Sul do Recife, que aguarda por moradia nos habitacionais Encanta Moça I e II, no mesmo bairro. Apesar de estarem no prazo de entrega, eles não atendem à demanda de todos que precisam - que nem mesmo sabem quem de fato será contemplado, detalhes sobre o andamento da obra ou o que está previsto para a área.
No Bode, famílias esperam ansiosamente pelo teto que pode não chegar. Isso porque não há espaço para as 800 famílias que moram em condições precárias na comunidade e foram cadastradas pela Prefeitura do Recife para habitar o residencial, que só terá 600 apartamentos, e nem novo projeto para os remanescentes. A construção é de responsabilidade do Ministério de Desenvolvimento Regional (MDR), do governo federal, a partir de recursos da Caixa Econômica, e tem prazo de entrega para abril de 2022, de acordo com Comissão Especial de Acompanhamento das Obras na Câmara Municipal do Recife. Ainda, do total de casas, 163 devem ser destinadas a famílias que recebem auxílio moradia desde que tiveram a casa desapropriada para construção da Via Mangue, e o restante para palafitas da comunidade.
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“Minha casa há anos foi marcada para indicar que eu iria para o habitacional, mas não sei quando será. Meu sonho é sair daqui e ter minha casinha de tijolo”, disse Taciana com um sorriso que se desfez ao declarar: “tomara que ele saia logo. Morar em maré é muito ruim”. O desejo também é da irmã, Angélica da Silva, 28 anos. “Eles ainda vão vir dar resposta. Já faz tempo que marcaram as casas, e da última vez mandaram a gente fazer o resto do cadastro. Aqui não é bom de morar, tem muito barulho e crime. Passa muito rato e timbu. Eu quero sair daqui. Não sei o que vai ter lá, não chegaram para falar para a gente e não fomos para a reunião. Estamos só esperando as casas saírem”, contou.
O ativista e ex-diretor de habitação do Recife Felipe Cury criticou a falta de espaço para que a comunidade participasse das duas primeiras das quatro audiências públicas. “Pela primeira vez a prefeitura apresentou o projeto mais concreto. É bom, mas não resolve o problema habitacional e de urbanização do Bode, especificamente, já que não vai ser suficiente nem para as famílias cadastradas na comunidade. Qual será o critério utilizado para ser contemplado?", indagou. "Além disso, ainda vão ser contempladas famílias das comunidades Deus nos Acuda, Pantanal e Beira Rio que estão no auxílio moradia por terem tido casas demolidas para construção da Via Mangue", pontuou.
Na próxima audiência, no dia 21 de outubro, é prometido pela Comissão na Câmara o anúncio dos beneficiários, os critérios de seleção e medidas educativas para preservação dos edifícios. Já no dia 18 de novembro será apresentado o esquema de segurança e do Parque e do entorno. A estruturação dos prédios foi concluída, e, agora, passam por serviços de instalações elétricas, hidráulicas, fiação, entre outros serviços, além da ligação dos habitacionais com as estruturas da Celpe e Compesa, segundo o vereador Paulo Muniz (Solidariedade), presidente do grupo. Todos os apartamentos têm 45 metros quadrados, dois quartos, banheiro, sala, cozinha e área de serviço.
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Os dois blocos do Encanta Moça estão sendo erguidos no Complexo Aeroclube, que, em seus 12 hectares, prevê a construção de parque, UPA 24h, creche integral e 12 lotes destinados a empreendimentos imobiliários - o que, para Alyson Fonseca, secretário do Coletivo Novo Pina, deveria ser um espaço direcionado à construção de mais casas para quem necessita. “Projeto apresentado mostra que tudo serve apenas para esconder o obscuro interesse em ceder doze lotes, somando uma área de 38 mil metros quadrados, para o mercado imobiliário. Que cidade para endeusar empreiteira! Por fim, a Gestão Pública mais uma vez passa por cima do interesse público e apresenta um projeto sem diálogo e participação efetiva da comunidade”, garantiu.
A Diretora Executiva Nacional da ONG Habitat para a Humanidade Brasil, Socorro Leite, também tinha expectativa de que mais apartamentos fossem construídos no Aeroclube. "Esse é um dos poucos terrenos bem localizados que tem parte destinada para habitação popular. De fato, é um número muito pequeno de moradias produzido em relação à demanda da região, que concentra muita palafita e que tem uma relação forte com a pesca. A gente tinha a expectativa de que fossem colocar mais famílias para aquele habitacional. É difícil porque a demanda habitacional do Recife é grande, e em parte em bairros bem localizados. E isso vai ficando cada vez mais complicado", disse.
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Exemplo dessa necessidade por moradia é representada em Ana Cássia Golveia, de 25 anos, e o seu marido - uma das famílias que reside em casa improvisada no Bode e que não terá direito a um apartamento no Encanta Moça. “Casamos e fomos morar de aluguel, mas na pandemia ficamos desempregados e fizemos uma casa de madeira aqui. Aqui entra muito bicho por ser perto da maré, escorpião e barata. É dificuldade em cima de dificuldade, mas a necessidade nos obriga [a viver aqui]. O povo está tudo esperando para sair. Quando passaram para fazer o cadastramento, ninguém veio ver meu barraquinho, e a gente perdeu [a vaga]”, contou ela.
O problema da falta de habitação que atinge Taciana e seus vizinhos nasceu junto ao Recife, que precisou dar conta de toda população de Olinda quando holandeses atearam fogo na cidade em 1631 - e parece seguir até hoje. Segundo último Plano Local de Habitação de Interesse Social da Prefeitura do Recife, o déficit por moradia da cidade era de 71.160 casas em 2017. Entre esse número, 4.725 casas eram consideradas precárias, rústicas ou improvisadas. "O ideal, se fosse possível, seria construir as casas nas próprias comunidades. Mas no Recife não tem mais esse espaço; as comunidades estão densas, é difícil consolidar principalmente as palafitas, além do valor da terra também ser alto, e por isso há esse movimento de colocar em prédios", explicou Socorro.
A reportagem do JC contatou o Ministério de Desenvolvimento Regional (MDR), que não enviou resposta até o horário desta publicação. O espaço está aberto para esclarecimentos. A Caixa, por sua vez, disse que os critérios de seleção cabem à Prefeitura do Recife, e não enviou nota à reportagem.
Já a Autarquia de Urbanização do Recife (URB) informou que foram enviadas à Caixa 600 famílias residentes nas áreas de palafitas próximas aos Habitacionais Encanta Moça I e II e outras 200 - para caso as primeiras não cumpram as exigências do Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico). "No momento, a URB está convocando as famílias que apresentaram pendências no cadastro junto à Caixa para que elas providenciem os documentos necessários. Já as questões referentes aos prazos e ao orçamento da obra são de responsabilidade da Caixa", disse.