Por uma inesperada coincidência de datas, vimo-nos – eu e Gil - em plena Buenos Aires na final da Copa do Mundo, e tivemos a oportunidade de ver aquele fabuloso jogo entre França e Argentina em que boa parte dos brasileiros ali torciam, quem diria!, pelos “hermanos”.
Não foi o jogo em si ou as virtuosas apresentações de Messi e Mbappé que me impressionaram, mas o fervoroso e ostensivo nacionalismo argentino, sobre o qual tentarei, a seguir, examinar mesmo que precariamente.
Marcel Detienne no seu livro “A Identidade Nacional, um enigma” (Autêntica, 2013) pergunta-se que “mistério habita o nacional” e porque os homens se apegam a certas crenças mais do que a outras? A identidade (nacional) é a afirmação da mesmidade, o ser idêntico a si mesmo, o que exige, por sua vez, uma “outridade”, seja como adversário, como inimigo ou como diferença, que precisa ser fabricada para produzir seu inverso especular: o Mesmo!
Nação deriva de nascer/nascimento e aquilo que chamamos de Consciência Nacional é produzido no interior de nossas subjetividades através da educação (sobretudo do ensino da História, da tradição, dos vultos e heróis...) em que deixamos, de certa forma, de ser PESSOA para ser, digamos, ARGENTINO, com seus símbolos e distintivos imediatamente visíveis através de bandeiras, canções, gestos...
Em 23 de Julho de 1789 a Assembleia Francesa decretou “La Patrie em danger” (A Pátria em perigo) diante da ameaça reacionária da Áustria e construindo a idéia, abstrata e obscura, de que a “Nação se encarna no povo” (que é “Uno e Indivisível”) e Renan, bem mais tarde chegou a afirmar que uma “Nação é um plebiscito de todos os dias!”, onde afirmamos nossa re-união entre passado e futuro, vivos e mortos (não é á toa que Michelet achava que uma “Nação se faz com cemitérios e historiadores”), fazendo do enigma nacional algo único (ser “argentino”) e incomparável, tecido por laços de sentimento.
A Nação se realiza numa “espera”: as ações dos antepassados (Maradona, por exemplo, ou os sacrifícios dos jovens soldados que morreram nas Malvinas. Por toda parte vemos um “As Ilhas Malvinas são argentinas”), as ações dos antepassados, retomo, precisam ser atualizadas para que se possa realizar o encontro, tão esperado, da HONRA e da GLÓRIA, palavras, aliás, recorrentemente usadas pela televisão local após a vitória (como se houvesse algo de desonroso e inglório na derrota francesa!). Junta-se aqui a RE-UNIÃO com a COM-MEMORAÇÃO (literalmente uma memória partilhada), e para isso o fálico símbolo do Obelisco (na Avenida 9 de Julho) serve de altar, juntando os vivos em celebração (no chão) e os mortos (no céu para o qual o Obelisco aponta).
O futebol, dizia Michel Houellebecq, é a guerra prolongada por meios mais civilizados, com tempo para terminar e regras a serem respeitadas. O problema não é o que acontece em campo: é o que se passa nos afetos dos torcedores, projetando sobre os jogadores (agora tornados “símbolos”, como veria Jung) representando a unidade sonhada que durará o tempo da comemoração. Assim, não é a “SOCIEDADE” que eles representam – Sociedade é divisão, hierarquia, exclusão: é a NAÇÃO, que é sentimento compartilhado, reafirmação de pertencimento a uma comunidade (numa época de divisão e enfraquecimento da idéia de Nação - pela globalização- e de relativismos culturais), comunidade, diga-se, mais desejada do que realizada.
Mas para isso é preciso suspender o tempo, estabelecer uma ruptura com o cotidiano: daí o feriado “nacional”, quando a derrota para o inimigo (a Inglaterra nas Malvinas, sempre presente no espírito argentino) e a vitória sobre a França (inclusive com gestos grosseiros e agressivos do goleiro portenho contra os torcedores franceses, quando a taça de “Melhor Goleiro” se transforma em violência fálica contra o... inimigo!), faz de cada um soldado da causa comum: a causa nacional.
Tudo isso é um regalo, um prato cheio para as políticas populistas, que desejam uma imediata identificação do LÍDER com o POVO, passando ao largo das instituições. E é assim que a NAÇÃO se produz e se reproduz: como enigma, como símbolo, como desejo, como passado imaginado, como futuro desejado, como unidade sempre ameaçada...
Uma viagem, mesmo rápida, para um outro país sempre nos permite ver o que nunca queremos enxergar em nossa própria cultura. E parabéns aos argentinos por esta belíssima vitória.
Flávio Brayner, Professor Emérito da UFPE