Nosso Arquivo Público

O Arquivo Público do Estado que funciona com funcionários cedidos, encontra-se de portas fechadas e não há sinal de Dona Raquel de que, em breve, voltaremos a ter acesso à nossa história escrita e guardada. Coincidência? Desprezo? Ignorância? Deliberação?
FLÁVIO BRAYNER
Publicado em 07/02/2023 às 0:00
Arquivo Público de Pernambuco, em Santo Antônio Foto: GUGA MATOS/JC IMAGEM


Quando eu entrei pela primeira vez no Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano, no momento em que estava começando a escrever minha dissertação de mestrado sobre a atuação do Partido Comunista (PCB) em Pernambuco, eu não sabia exatamente o que fazer ali, nem que documentos solicitar à pessoa responsável que me perguntou o quê eu queria consultar. Isso foi em 1981!

Precisei de algumas semanas para saber que havia ali jornais, revistas, relatórios, fotografias... que não imaginava existir e logo comecei a compilá-los, anotá-los, copiá-los para, finalmente, perceber que a "história" que havia aprendido e lido sobre a política em Pernambuco, na segunda metade do século XX, talvez não fosse a mesma! Não conhecia sequer a existência de jornais como o Jornal Pequeno, a Folha do Povo, Última Hora, Diário da Noite... A Folha do Povo, por exemplo, era o jornal do PCB e nele li artigos de Palmiro Togliatti escritos nos anos 50 (Togliatti fora Primeiro-Ministro italiano e amigo pessoal de Antonio Gramsci) traduzindo e expondo as idéias daquele que fora, segundo Lukàcs, "o mais importante e original marxista dos anos 20". Isso desfazia a ideia de que nosso primeiro contato com a obra gramsciana só tinha se dado após as traduções de Carlos Nélson Coutinho por volta de 1967.

Foi ali, naquele Arquivo, onde tive a oportunidade de mostrar que a obra meio... apologética de Paulo Cavalcanti ("O caso eu conto como o caso foi") sobre nossa história republicana e o papel do PCB, tinha omissões e lacunas inaceitáveis, mas oportunas para produzir uma imagem "democrática" do PCB! Paulo e Ofélia eram muito amigos de minha família e ele não gostou de meu trabalho, depois publicado pela FUNDAJ. O interessante é que a pesquisa minuciosa que ele fez para contar a história política de Pernambuco foi feita exatamente no mesmo lugar (Arquivo Público) e com praticamente as fontes que eu mesmo utilizara. É aqui onde habita a seminal importância de um Arquivo: é o lugar onde gerações de pesquisadores e historiadores podem iniciar a narração de uma "outra" história.

Nosso, digamos, "acesso" à História passa por algumas etapas (Políbio sabia disso): a) o que viveu e experimentou os acontecimentos e os registrou a partir de um ponto de vista; b) o que ouviu ou leu a narração (mas não a viveu) e a narrou a partir, também, de um outro ponto de vista: o da sua época, da sua linguagem, de seus interesses e preferências ideológicas; c) aquele que lê o relato num outro contexto lingüístico, conceitual e histórico, longe dos acontecimentos "originais", e re-interpreta a interpretação; e, d) o didata que organiza, serializa, escolhe e simplifica didaticamente um conteúdo "oficializado" que será ensinado nas escolas, estabelecendo a relação "histórica" entre gerações e fixando um "passado", uma "ruptura" e uma "continuidade".

A pergunta é inevitável: o que significa a presença de um Arquivo Histórico em uma cidade? A resposta depende de que tenhamos adquirido e construído uma certa noção de História, uma concepção, digamos, moderna, progressista e até teleológica e nem todas as culturas ou sociedades têm isso ou se preocupam com isso (as "sociedades frias" de Lévi-Strauss); e, segundo, que tenhamos adquirido o poder da escrita e uma preocupação profissional com o registro do "que aconteceu", e não apenas a transmissão oral. Assim, num arquivo histórico mora algo só possível numa "SOCIEDADE QUE INVENTOU A HISTÓRIA", que crê numa concepção do TEMPO (como progresso, como salvação ou como liberdade) e numa relação entre os que não estão mais aqui e os que ainda não chegaram. Habita, também, uma outra possibilidade: a de que aquilo que foi visto ou narrado por testemunhas, cronistas ou historiadores possa ser novamente interpretado à luz das circunstâncias, injunções, conflitos e interesses do PRESENTE (Croce dizia que a "História é eterna contemporaneidade!"): o que eu "vi" (na verdade "li"!) naqueles mesmo jornais consultados por Paulo Cavalcanti a respeito da história política de nosso estado foi algo muito diferente do que ele "viu" ou experimentou. Minha irmã Iara Brayner (já falecida), muito amiga de Paulo e membro do PCB, achou que eu tinha razão, mas -completou- "era fácil fazer profecia a posteriori!". Eu compreendo minha querida irmã, mas não era disso que se tratava!

Ora, o Arquivo Público do Estado que funciona com funcionários cedidos, encontra-se de portas fechadas e não há sinal de Dona Raquel de que, em breve, voltaremos a ter acesso à nossa história escrita e guardada. Coincidência? Desprezo? Ignorância? Deliberação? Não sei: só sei que depois de 4 anos de abandono, descaso e destruição de nossos artefatos culturais, não acho que seja coincidência ou descaso, e penso que há políticas e estratégias de esquecimento muito eficazes, que começam com portas fechadas e terminam, muitas vezes, numa grande fogueira! Benjamin Constant (o francês) dizia que o fundamento moral da república era a confiança entre cidadãos e governantes. Sinto que estamos perdendo essa confiança e, com ela, o sentido da política, que Hannah Arendt dizia ser a "liberdade"!

Flávio Brayner, professor Emérito da UFPE

 

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