Há pouco mais de 60 anos, sob a inspiração do movimento francês animado por Joffre Dumazedier (Mouvement Peuple et Culture), iniciou-se no Recife (13 de maio de 1960), pela iniciativa de pessoas como Miguel Arraes (então prefeito), Germano Coelho, Paulo Freire, Abelardo da Hora, Luiz Mendonça, Geraldo Menucci, Silke Weber, Anita Paes Barreto e muitos outros, um amplo movimento cultural na cidade (posteriormente estendido para o interior do Estado), que envolveu intelectuais, estudantes, artistas populares, professores... e que ainda hoje, sobretudo na memória de quem viveu aqueles dias e se envolveu com o Movimento, um sentimento de que ali se estava fazendo algo de historicamente importante: um misto de afirmação identitária, de descoberta e valorização da “cultura popular” e de criação de um laço político-cultural importante entre intelectuais e povo.
O Movimento imprimiu em nossa lembrança comum uma marca tão profunda e inaugural que, não raras vezes, supomos que os bons momentos de criação e efervescência cultural em nosso estado sejam tributários do espírito desbravador do MCP.
O Movimento foi amplamente estudado e discutido sob a forma de teses, ensaios, entrevistas, artigos e livros. No geral, penso não estar longe da verdade ao afirmar que boa parte dos autores incide sobre um ponto comum a respeito do MCP: mesmo no interior de uma quadratura populista, estava a caminho um processo de emergência do “povo como categoria histórica” (José Batista, UFPE), como ator e sujeito de um projeto político e cultural que culminaria numa “crise de hegemonia” (João Francisco de Souza, UFPE) de onde se poderia vislumbrar a Canaã da “revolução brasileira” (Antônio Callado), que tinha em Pernambuco seu mais avançado laboratório. Todas estas teses, de fato, estão profundamente sedimentadas em nossa interpretação daquele período.
Há, assim, um sentimento bastante positivo por parte de seus estudiosos e ex-participantes: gerou-se uma atmosfera política e cultural na cidade (Recife) que apontava para uma espécie de redenção social. A cultura popular – cuja “descoberta” fora iniciada nos anos 20- começava a ser valorizada por uma elite intelectual tradicionalmente formada e conformada a um consumo restrito de bens culturais importados e de circulação bastante exclusiva – deixando de ser vista como sinônimo, e folclore, de persistência no meio popular de valores arcaicos e rurais ou como manifestação pitoresca e exótica em um país ainda fortemente marcado por relações de mando, de base clientelista e patrimonial. Aqueles que participaram do Movimento guardam, acima de tudo, um nostálgico sentimento de que, depois dele, não se fez mais nada de tão importante e “mobilizador”, e o que se fez foi consequência de seu legado.
Um destes legados, e que ainda se pode ver em algumas praças do Recife (Beberibe, Várzea, Iputinga, Torre, Largo D. Luiz, Praça do Trabalho) são as chamadas “praças de cultura”. O projeto, elaborado no momento em que o artista plástico Abelardo da Hora (1924- 2014) dirigia a Divisão de Parques e Jardins da Prefeitura do Recife, inspirava-se nas experiências relatadas pelo professor Germano Coelho, quando de seu estágio na França e seu contato com Joffre Dumazedier, e com as experiências culturais da antiga Universidade Operária (anos 30, coordenada por Georges Politzer. França) e pelo maestro Geraldo Menucci quando de sua passagem pela antiga URSS e de sua experiência com apresentações em praça pública do repertório clássico universal. Ficava claro, naquela iniciativa recifense, que outro conceito de “cultura” estava sendo gestado e, sobretudo, que a clássica divisão hierarquizante entre ”cultura popular” e “cultura erudita” estava sendo reavaliada, em que, tanto a Universidade quanto as diferentes instituições de cultura, saíam de seus nichos tradicionalmente “protegidos” e se aventuravam em praça pública, numa atitude que chamaria de “republicanismo cultural”, dialogando com as expectativas e produções ditas “populares” e abrindo a própria Universidade para campos de pesquisa linguística, musical, teatral, educacional, corporal, plástica... até então insuspeitáveis, dada aquela distância que estabelecia hierarquias culturais nem sempre aceitáveis e, em geral, excludentes, numa sociedade de grave e secular tradição segregacionista.
Talvez fosse o caso de nosso Secretário de Cultura, Silvério Pessoa (que, aliás, foi nosso aluno no Centro de Educação da UFPE) criar algo semelhante e inovador que pudesse fazer circular de forma constante e renovada os inúmeros grupos culturais de que nosso Estado é pródigo. Fica a sugestão!
Flávio Brayner
é Professor Emérito da UFPE