*Escrito por Juliano Domingues e Caio Ramos
O tema “regulação da mídia” voltou ao noticiário nacional, por ocasião da participação do Brasil na conferência “Para uma internet confiável” (Internet for Trust), em Paris, nos dias 22 e 23 últimos. O secretário de Políticas Digitais da Secretaria de Comunicação da Presidência, João Brant, leu na Unesco uma carta do presidente Lula à diretora-geral da entidade, Audrey Azoulay, em que o governo brasileiro defende a regulação das plataformas digitais.
Mas o que significa regulação? O conceito mais difundido diz respeito a corrigir falhas de mercado, que vão desde monopólios, naturais ou não, à inadequação de informações, passando por externalidades, dentre outras. No entanto, há outras razões, além das falhas de mercado, para se regular, a exemplo da proteção de direitos humanos ou da promoção da proteção social.
Para ilustrar, inicialmente, tratemos sobre regulação não propriamente na mídia, objeto deste texto, mas de outros campos, como o da alimentação de crianças. O governo de Israel, por exemplo, proíbe a venda de refrigerantes em escolas, que devem substituí-los por água ou suco. Batata frita e salsichas também foram banidas do cardápio e deram lugar a sanduíche de atum, verduras e frutas. Na Espanha, discute-se o fim da propaganda de produtos calóricos para crianças, como chocolates, sorvetes e biscoitos.
Outro exemplo é a regulação sobre a indústria de cigarros, que tem no Brasil um caso emblemático: a proibição de anúncios de cigarros completou 22 anos, apesar do lobby de R$ 55 bilhões em verbas publicitárias de que dispunha a poderosa indústria do tabaco à época. Ainda que haja o debate sobre eventuais efeitos colaterais dessa medida regulatória, como uma possível diminuição da concorrência e a concentração de mercado, é inegável o seu papel educativo e de preservação da saúde da população.
Nesses três exemplos, regras foram implementadas por diferentes governos e indústrias, em diferentes países (nenhum deles autoritário, ressalte-se), para preservar a saúde da população. Isso é regular. As marcas de refrigerantes e os produtores de batatas e embutidos certamente ficaram furiosos, assim como as empresas de cigarro. Afinal de contas, é o negócio deles. Mas há uma palavra que ajuda a entender esse tipo de episódio: chama-se externalidade.
Apenas para destacar uma dessas falhas de mercado, quando determinado segmento impacta o bem-estar de outras pessoas que não participam da mesma atividade, tem-se aquilo que os teóricos denominam de custo social da produção. Quando esse custo se mostra alto, o Estado tem o dever de entrar em ação para estabelecer regras capazes de influenciar o comportamento daqueles que causam externalidades negativas – ou, em outras palavras, danos à coletividade.
O caso mais comum é o da emissão de gases poluentes e o contorcionismo em nível global feito por líderes no sentido de reduzir o dano coletivo. É, portanto, dever de governos responder à externalidade com a implementação de políticas públicas, que emergem de um complexo processo de negociação entre governantes, grupos de interesse e setores da sociedade civil organizada.
E antes que alguém sugira se tratar de medida autoritária contra a livre-iniciativa, vale lembrar que esse debate existe, há anos, nos EUA, associado a atividades administrativas do Estado. Uma das primeiras agências reguladoras se chamava Interstate Commerce Comission (ICC) e foi criada em 1887 para coibir abusos praticados por empresários nas ferrovias estadunidenses. Com o tempo, esse tipo de ação se expandiu para diversos setores, como energia, telefonia, aviação, dentre outros, de modo compartilhado entre distintas esferas do poder público, o próprio setor privado e representantes da sociedade civil.
Com o desenvolvimento da microeletrônica e das tecnologias da informação e da comunicação (TICs), os meios de comunicação também passaram a figurar nesse grupo de atividades reguladas pelo Estado. É também nos EUA que surge a FCC, a Federal Communication Comission, a agência reguladora para telecomunicações e radiodifusão, ainda em 1934 – período em que o rádio, fenômeno de massas à época, apresentava suas externalidades.
Um salto na linha do tempo e, agora, a bola da vez das externalidades são as redes e mídias sociais digitais. Novamente, o exemplo vem do EUA, onde o todo-poderoso Mark Zuckerberg depôs por mais de cinco horas no Senado, em abril de 2018, sobre regulação e uso indevido de dados de usuários do Facebook. Na ocasião, ele afirmou que "proteger a nossa comunidade é mais importante que maximizar nossos lucros". Não por coincidência, Zuckerberg falou a língua da regulação após ação do Estado.
O presidente dos EUA, Joe Biden, já se manifestou favoravelmente a essa pauta, em comunicado da Casa Branca no fim do ano passado: “A ascensão das plataformas de tecnologia introduziu novos e difíceis desafios, desde os trágicos atos de violência ligados a culturas tóxicas online, à deterioração da saúde mental e do bem-estar, aos direitos básicos de americanos e comunidades em todo o mundo que sofrem com o surgimento de grandes e pequenas plataformas de tecnologia”.
A carta de Lula lida na Unesco segue essa mesma linha. Em determinado trecho do documento, lê-se uma lista de falhas de mercado, especialmente, de externalidades negativas: “O ambiente digital acarretou a concentração de mercado e de poder nas mãos de poucas empresas e países. Trouxe, também, riscos à democracia. Riscos à convivência civilizada entre as pessoas. Riscos à saúde pública. A disseminação de desinformação durante a pandemia contribuiu para milhares de mortes. Os discursos de ódio fazem vítimas todos os dias. E os mais atingidos são os setores mais vulneráveis de nossas sociedades.”
Adiante, a carta afirma: “A comunidade internacional precisa, desde já, trabalhar para dar respostas efetivas a essa questão desafiadora de nosso tempo. Precisamos de equilíbrio. De um lado, é necessário garantir o exercício da liberdade de expressão individual, que é um direito humano fundamental. De outro lado, precisamos assegurar um direito coletivo: o direito de a sociedade receber informações confiáveis, e não a mentira e a desinformação.”
A externalidade negativa das plataformas digitais tem comprometido direitos básicos de indivíduos e os principais pilares de instituições de regimes democráticos. O que o governo brasileiro ofereceu em Paris está em qualquer manual sobre regulação. Isso não é censura, ao contrário: é dever do Estado. Censurar, na verdade, é tentar interromper, já na partida, o debate sobre um tema tão importante.
*Juliano Domingues, professor da Unicap, é autor do livro “O espectro autoritário: como a concentração de mídia fragiliza a democracia” (Ed. Appris, 2021).
Caio Ramos, doutorando do PPGD da Unicap, é mestre em Regulação pela London School of Economics and Political Science.