O papo e a solidão coletiva

A maioria das pessoas está de olhos grudados no celular ou na tela de um notebook, com fones de ouvido, ansiosas por não serem incomodadas com abordagens de terceiros que não conhecem, nem querem conhecer, preferindo seus interlocutores desconhecidos do outro lado da tela
JOÃO HUMBERTO MARTORELLI
Publicado em 09/03/2023 às 0:00
A maioria das pessoas está de olhos grudados no celular ou na tela de um notebook, com fones de ouvido, ansiosas por não serem incomodadas Foto: MARCELLO CASAL JR/AGÊNCIA BRASIL


Nos bares e restaurantes, nas salas de espera dos consultórios, nos ônibus, nos escritórios dos serviços públicos, nas filas de cinema, teatro, bancos e estádios de futebol, em todos os locais, enfim, onde pessoas desconhecidas se reúnem ou se encontram, meu indefectível bom dia ou boa tarde ecoa no vazio. A maioria das pessoas está de olhos grudados no celular ou na tela de um notebook, com fones de ouvido, ansiosas por não serem incomodadas com abordagens de terceiros que não conhecem, nem querem conhecer, preferindo seus interlocutores desconhecidos do outro lado da tela.

Antigamente, entrávamos nas barbearias, e, ao cumprimento inicial, seguia-se um papo com o barbeiro sobre futebol, a que acorria, de forma muito natural, o cliente da cadeira ao lado, e a conversa tomava fôlego, logo entrando em outros domínios, até que, num átimo, surgia na conversa um conhecido comum, e se seguiam as brincadeiras, os feitos, os atos repulsivos ou dignos, a tragédia familiar, a viagem inacreditável, a vida do terceiro, que não era mexerico, apenas o amálgama de duas solidões reunidas ao acaso, reconhecendo que estar com um estranho de bobeira pode amenizar a dor de viver.

Hoje, a regra é o silêncio, o bom dia geral, quando se entra no estabelecimento, é um ruído, quase uma falta grave e um desrespeito à vida privada de quem está com seus apetrechos instalados. Esse é um fenômeno que está acontecendo em todas as grandes cidades do mundo, despertando inclusive a curiosidade científica de pesquisadores que procuram conhecer as causas. Parece, em primeiro lugar, que a pandemia e o teletrabalho despertaram novos hábitos sociais.

As pessoas estão nas ruas, caminhando, esperando nas filas, aguardando seus horários de atendimento, até nos locais de diversão, ao mesmo tempo em que trabalham, de modo que evitam interrupções indesejadas que possam desviar a atenção da obrigação primária. Estranho efeito esse, o da pandemia, que, se, por um lado, nos tornou mais solidários e compassivos, elevou a compaixão a uma estranha abstração, sem emoções, como se a tragédia não pudesse sair da tela para comprometer a realidade medíocre, mas também redentora: sobrevivemos.

Por outro lado, o enorme crescimento populacional contribui decisivamente para a situação. Há cinquenta anos, todos os desconhecidos no caminho da escola, nas ruas, nas praças, no transporte coletivo, eram, a igual tempo, pessoas conhecidas, sentíamos fazer parte da mesma comunidade, angústias e alegrias semelhantes estampadas no jornal vespertino, que era a única fonte de informações. Havia, aqui e ali, o diferente, mas todos o acolhíamos, era nosso diferente. Conversávamos animadamente durante o trajeto do ônibus. Hoje, puxar o papo é um risco: do outro lado, pensamos logo, pode estar um facínora. Ou pior, um bolsonarista-raiz.

João Humberto Martorelli, advogado

 

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