O Brasil é um país mestiço. Se reconhece moreno e deve se orgulhar da mistura, diversas tonalidades do marrom, colorindo a paisagem humana deste país tropical. A pesquisa do IBGE (PNAD 2021) mostra que quase metade dos brasileiros (47%) se consideram pardos (morenos), cor da pele que resulta da miscigenação ao longo dos tempos (43% se consideram brancos, 9,1% pretos e 0,9% dos brasileiros amarelos ou indígenas).
Ao longo das décadas, vem crescendo a percepção da mestiçagem; em 2010, eram 43,1% os que se consideravam pardos, abaixo dos 47,7% que se identificavam como brancos. Representando mais que apenas a cor da pele, a mestiçagem expressa a diversidade sociocultural do Brasil, a complexidade e a riqueza da cultura que caracterizam o ethos brasileiro e configuram a identidade nacional.
No combate legítimo contra o racismo, os movimentos sociais procuram esconder a população mestiça do Brasil por trás de uma falsa e arbitrária polaridade entre negros e brancos, postura que tem sido incorporada nas formulações oficiais e em muitas análises acadêmicas.
Ao afirmar que a maioria da população brasileira é negra, somam o percentual de pardos (47%) e pretos (9,1%) para concluir que 56,1% dos brasileiros são negros, num recorte binário da complexa mistura genética e cultural que caracteriza a sociedade brasileira.
E nem precisam deste artifício para denunciar o racismo no Brasil que, com certeza, atinge também parte da população mestiça. Mas, ao negar a mestiçagem, juntando pardos e pretos como uma unidade, a “nação negra” contra o restante dos brasileiros, estão distorcendo a realidade e tentando anular o que temos de mais valioso na cultura brasileira.
Estão certos quando consideram que os mestiços são também afrodescendentes. No entanto, na medida que é o resultado de uma mistura genética, os mestiços são tão afrodescendentes quanto euro-descendentes (ao contrário dos negros que, estes sim, são afrodescendentes).
Na verdade, com diferentes combinações genéticas, pelo menos 47% dos brasileiros se consideram afro-euro-indígenas descendentes. O que torna totalmente equivocado e, mesmo, reacionário, subsumir os mestiços (maior continente da população brasileira) na categoria de negros ou afrodescendentes.
Até o início do século passado, as ideias e propostas racistas divergiam em relação à mestiçagem adotando duas posições diferenciadas, ambas da perspectiva da elite branca. Alguns, como Nina Rodrigues, condenavam a mistura genética de brancos, negros e índios porque estaria levando à “degeneração da raça” brasileira.
Queriam que o Brasil fosse dividido em brancos e negros, mas evitando a miscigenação. Na mesma época, outros pensadores, como Silvio Romero e Oliveira Vianna, defendiam a miscigenação como uma forma de embranquecer o Brasil com a ampliação da genética europeia no total da população brasileira.
Com visões diferentes, ambos pretendiam “melhorar a raça brasileira” entendida como branca e euro-descendentes. O planode embranquecimento dos brasileiros foi encaminhado, nas primeiras décadas do século passado, pela migração em massa de cidadãos europeus e não tanto pela miscigenação (em 1890, a população branca era estimada em 44% da população, percentual que saltou para 63%, em 1940).
Com objetivos opostos aos eugenistas do passado e movidos por objetivos civilizatórios, a luta contra o racismo, os movimentos negros embarcam numa tentativa semelhante de anular a mestiçagem da identidade nacional.
Com a redefinição das categorias do IBGE, que refletem a autopercepção dos brasileiros, manipulam os númerospara decretar que a maioria dos brasileiros é negra, de modo a dividir o Brasil em duas “nações”. Parodiando Caetano Velozo, são o avesso do avesso.
Por outro lado, esta segmentação dos movimentos negros é uma cópia do modelo americano de divisão da população entre brancos e coloreds (todos os não brancos). O que parece muito pertinente para os Estados Unidos, um país com uma história de segregação racial que tolheu o processo de miscigenação, é totalmente inadequado para o Brasil.
A segmentação da sociedade brasileira entre brancos e negros, quando 47% dos brasileiros se consideram mestiços (agro-euro-indígena descendente) é uma imprecisão grosseira que distorce a realidade e tenta anulara complexidade nacional, escondendo a mestiçagem.
Trata-se de uma simplificação binária da complexidade sociocultural do Brasil (brancos e negros) que deveria incomodar os movimentos identitários brasileiros, defensores ativos do gênero não-binário.
Sérgio C. Buarque, economista