Picolé de manga

Quando morei no Rio, não perdia uma mesa redonda de televisão, que reunia vários jornalistas, inclusive Nelson e Zagallo, a quem ele tratava com solene desdém
ARTHUR CARVALHO
Publicado em 26/04/2023 às 0:00
Nelson Rodrigues: jornalista e escritor pernambucano Foto: REPRODUÇÃO


Nelson Rodrigues dizia que até para chupar um picolé a pessoa tem que ter sorte - e é verdade. Pra turma nova, que não conhece Nelson, direi que era pernambucano, de ilustre família de intelectuais, dramaturgo, cronista e escritor. Manuel Bandeira dizia que a dramaturgia brasileira se resumia a duas etapas: antes e depois de "Vestido de noiva", peça de Nelson, estrepitosamente vaiada na noite de estreia, no famoso e tradicional Teatro Municipal do Rio de Janeiro, coisa que ele adorou.

Nelson não enxergava bem mas não perdia jogo de futebol no Maracanã. Principalmente do seu Fluminense, no estádio Mário Filho, homenagem a seu irmão, autor de "O negro no futebol brasileiro", clássico da nossa literatura esportiva. Nelson ia aos jogos, com dois ou três amigos do peito, concentrava-se no barulho da torcida, e, no dia seguinte, escrevia em sua coluna no Globo uma matéria melhor do que todas as outras dos cronistas especializados.

Quando morei no Rio, não perdia uma mesa redonda de televisão, que reunia vários jornalistas, inclusive Nelson e Zagallo, a quem ele tratava com solene desdém. Num desses programas, ele comentou um lance da partida da noite anterior, e Zagallo discordou de sua opinião, dizendo que o "teipe" lhe dava razão. Nelson rebateu com uma frase genial tipicamente rodrigueana: "O teipe é burro!" E o velho Lobo calou-se para sempre.

Escrevendo sobre um amistoso em que o Brasil perdia pro Paraguai, no Maracanã, ele profetizou: "O Brasil começou a ganhar quando o alto-falante anunciou que Zizinho iria entrar em campo no time brasileiro". Vejam a sutileza do gênio: "Iria entrar" - e não "quando entrou".

Quando vaticinou que até pra chupar um picolé a pessoa tem que ter sorte, pensei que estava brincando, fazendo blague ou apenas fraseando. O tempo me ensinou que é a mais profunda verdade. É raro, mas pênaltis batidos na trave ou no travessão podem definir um campeonato inteiro a favor de time tecnicamente inferior. E é nessa raridade que reside o fator sorte, embora o pênalti não seja loteria como querem certos treinadores. Conheci parentes e idosos que morreram de queda no banheiro. E criança, engasgada com chiclete. Recentemente parti um dente chupando picolé de manga, prejuízo de quatro mil reais. Publico estas linhas por sugestão do leitor Mário Moutinho. Sobre a dignidade do transporte público às seis da tarde, Nelson dizia: "O ônibus apinhado é o túmulo do pudor!"

Arthur Carvalho, da Associação Brasileira de Imprensa - ABI.

 

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