O kafkiano na história

Em termos de narrativa bélica no Leste Europeu, será demasiado complexo o registro futuro da posição do Brasil a partir dos pronunciamentos do Presidente do Brasil
DAYSE DE VASCONCELOS MAYER
Publicado em 07/05/2023 às 0:00
"É quase provável que a história conclua que Lula seguiu o pensamento de Machado de Assis no romance Quincas Borba: Ao vencido, o ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas" Foto: EVARISTO SA/AFP


Em Ulysses, afirmava Joyce que "a história é o pesadelo do qual eu estou a tentar acordar". Sou destinatária dessa frase. Por isso aceito a existência, nos livros de História, de uma linha de natureza ficcional ou quimérica. Afinal, não se deve podar a imaginação do historiador.

Um exemplo: em termos de narrativa bélica no Leste Europeu, será demasiado complexo o registro futuro da posição do Brasil a partir dos pronunciamentos do Presidente do Brasil. É quase provável que a história conclua que Lula seguiu o pensamento de Machado de Assis no romance Quincas Borba: Ao vencido, o ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas". Afinal, nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói". Mas vamos deixar de lado as mentiras ou aleivosias ocorridas em Brasília e no Mundo para realçar os fatos paroquianos obtusos daqueles que são ávidos de poder e glória. Com isso aproveitaremos a passagem de Lula por terras de Camões e o prêmio recebido por Chico Buarque.

Principio pelos anos 90 quando eu era docente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDL). No decênio, a instituição recebeu a visita da Profa. Ivânia Barros Melo, diretora da Faculdade de Direito de Olinda (na época AESO). Mulher de temperamento sibilino, sempre deteve uma forte vocação para o alcance de objetivos grandiosos. Em conversa comigo proferiu uma frase curiosa: "vou comprar seu passe". E a Profa. Ivânia comprou. Regressei ao Brasil para desenhar o projeto de curso de especialização em Direito, contando com a incansável obstinação e interesse do diretor da FDL na época - Prof. José de Oliveira Ascensão (recém falecido) - do comprometimento da Profa. Paula Costa e Silva e da minha coparticipação direta.

O curso foi realizado com o envolvimento da nata docente de Lisboa e do Porto, valendo a pena citar, entre muitos, o constitucionalista Jorge Miranda, o civilista José de Oliveira Ascensão, o administrativista Paulo Otero, a processualista Paula Costa e Silva e a Profa. da Católica do Porto, Rita Lobo Xavier, da área de Direito de Família. Além de cuidar da coordenação, ministrei a disciplina Direito Comunitário. No elenco do seleto grupo de alunos estavam o desembargador Jones de Figueirêdo Alves, o magistrado Sílvio Romero Beltrão e o advogado e ex-presidente da OAB Ronnie Preuss Duarte (hoje diretor da ESA Nacional. O tempo passou depressa. Chegou a vez e hora do desembargador Frederico Ricardo de Almeida Neves, na época diretor da Escola da Magistratura de Pernambuco (Esmape). Figura de raro entusiasmo, dinamismo e inteligência, teve a ideia de realizar um Congresso em Portugal com a participação de magistrados do Tribunal de Justiça (TJPE). Salvo desvio de memória, o tema escolhido foi a teoria do risco no Direito. Recordo o sucesso do conclave e das discussões suscitadas pelo então Corregedor Des. José Fernandes de Lemos.

Na condição de Coordenadora de Projetos Especiais, docente e membro do conselho editorial da Esmape, assumi o encargo de preparo, junto com a Profa. Paula Costa e Silva, do convênio entre a FDL e a Esmape. Seguiu-se, meses depois, a realização de um Simpósio no Recife com igual equipe da FDL. Na condição de convidada especial, participou a Profa. Teresa Arruda Alvim.

As experiências supracitadas constituem, hoje, a gênese do Departamento Luso-Brasileiro criado na FDL e que passou a contar, inclusive, com a cooperação do Ministro Gilmar Mendes. A experiência veio a se alargar grandemente e outros convênios foram assinados, inclusive com a PUC de São Paulo.

O insólito ou atípico nessa história é que a ESMAPE conferiu prêmios a figuras ilustres consideradas "genitores" do convênio Esmape/FDL. Não encontrei o nome do desembargador Frederico Neves, do Prof. Oliveira Ascensão (in memoriam), da Profa. Paula Costa e Silva e do meu. Embora eu não sofra daquela fatuidade ou arrogância que sonoriza muitos profissionais; embora eu jamais tenha obtido ou agenciado sinecuras em minha vida profissional, não me cabe silenciar a existência de pecadilhos e extravios na conduta humana. Por isso devo confessar, com certo humor mesclado de sarcasmo, que apenas fiquei com as batatas.

Outras histórias mal narradas aconteceram. Foi o caso da criação da Faculdade Marista - atualmente, Faculdade Imaculada Conceição do Recife (FICR). Diferente do que afirmam, a fundação da Marista - trabalho incansável do falecido irmão Ailton dos Santos Arruda - teve como carro-chefe o curso de Direito que obteve nota máxima da OAB Federal após a defesa, por mim, em Brasília, do projeto do curso. Convém ressaltar que, nessa época, a OAB havia restringido as autorizações para a abertura de novos cursos de Direito.

Tudo isso faz lembrar - com excesso de ofensa à grandeza d'alma - a obra "Guerra e Paz", em que Tolstói institui uma nova narrativa para o desempenho de Napoleão nas guerras contra a Rússia no século XIX. Já que preferi esquecer meu direito ao silêncio e o medo dos pesadelos e do temor de não despertar, eu deveria ter escolhido as "Confissões". Ainda assim deveria pedir perdão pelo registro do nome do grande escritor russo em fatos tão prosaicos. Eis o kafkiano na história humana.

Dayse de Vasconcelos Mayer, doutora em ciências jurídico-políticas

 

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