Venezuela: da democracia política ao autoritarismo em três atos

Segundo o Democracy Index de 2022, a Venezuela foi o país da América Latina que mais recuou em seu índice de regime político
JOSÉ MARIA NÓBREGA
Publicado em 16/07/2023 às 0:00
Os presidentes Lula e Maduro: juntos na defesa da "democracia relativa" Foto: Ricardo Stuckert / divulgação


Com o insistente apoio de Lula aos ditadores de Cuba, Nicarágua e, principalmente, Venezuela, a discussão sobre os regimes políticos na América Latina tomou força nas últimas semanas. Com várias prisões de pessoas opositoras ao governo de Nicolás Maduro, bem como a subtração da disputa eleitoral de importantes figuras da oposição, como a proibição de participar do próximo pleito presidencial da principal oponente, Maria Corina Machado, vimos a necessidade de escrever um pouco sobre a história recente do cenário político da Venezuela. Faremos isto em três atos.

Primeiro ato: a fragilidade da democracia venezuelana

Há um sério risco em se analisar regimes políticos democráticos apenas pelas instituições promotoras do processo eleitoral. Esse risco se encontra na lacuna que os analistas geralmente deixam ao não se reportar ao funcionamento do Estado como promotor do equilíbrio entre os poderes. Essa visão, chamada de subminimalista, é a mesma adotada por Lula.

Desde 1958 a Venezuela era considerada um oásis de estabilidade política. As transições político-eleitorais se davam com frequência e estabilidade. Os observadores internacionais viam a Venezuela como uma democracia consolidada e estável. Havia experiência de muitas eleições multipartidárias com alternância de partidos no poder.

Era o pacto político de Punto Fijo, que instalou uma democracia política elitista/consensual na Venezuela. Os partidos políticos Acción Democrática (AD) e o Comité de Organización Política Electoral Independiente (COPEI) se alternavam no governo. Esses dois partidos estabeleceram monopólio do poder na Venezuela, controlando a máquina pública. Contudo, nos anos 1980, a corrupção e suas políticas mal-sucedidas criaram insatisfação na sociedade venezuelana, abrindo espaço para grupos radicais de esquerda.

Liderados por Hugo Chavez, que tentou um golpe de estado em 1992 e que foi preso por isso, criou o "Movimento Bolivariano Revolucionário 200" (MBR-200) com o intuito de chegar ao poder sob às regras eleitorais. A principal crítica do movimento era voltada contra a corrupção do governo de Carlos Andrés Perez, do AD. Em 1998, com o desgaste do puntofijismo e percebendo boa oportunidade de chegar ao poder, Chavez candidata-se e é eleito presidente da Venezuela. Aí começava o declínio da democracia venezuelana.

As eleições de 1993 já tinham produzido, desde o Pacto de Punto Fijo, uma nova distribuição das cadeiras no parlamento. Até então, AD e COPEI produziam a maioria dos parlamentares, a exemplo das eleições de 1988 na qual obtiveram 93% das cadeiras. Nessa nova distribuição, a AD ficou com 23,6% das vagas, o COPEI 22,7% e o partido La Causa Radical (La Causa-R), de Hugo Chavez, ficou com 21% das cadeiras.

Em 1998, Hugo Chavez chegou ao poder com 56% dos votos contra 39,9% do seu opositor pelo COPEI, Rafael Caldera. A queda dos dois principais partidos foi maior do que nas eleições de 1993. A maioria chavizta se consolidava no parlamento.

Segundo ato: Chavez no poder e a deterioração da democracia venezuelana

Após assumir o cargo em fevereiro de 1999, Chavez emitiu um decreto chamando um referendo para aprovar a eleição de uma Assembleia Constituinte, a ser realizada em abril daquele ano, e abriu um confronto com a Suprema Corte, tomando a posição de que esta assembleia constituinte poderia dissolver o Congresso e, portanto, atuar como um poder legislativo provisório.

O referendo produziu a maioria de 92% a favor de uma Assembleia Constituinte, embora menos de 40% dos eleitores tenham participado do pleito. A Assembleia Nacional Constituinte, eleita em julho, foi dominada por delegados pró-Chavez. Em agosto, este corpo declarado um "legislative emergency" se auto-nominou poder supremo da nação, assim, reduziu o poder do Congresso e, também, ameaçou de demitir juízes na reforma do Poder Judiciário. Eventualmente, um nomeado congresillo substituiu o Congresso eleito no período de transição.

A constituição resultante disso, ratificada em dezembro de 1999, expandiu os poderes do presidente, criando um regime político semiautoritário no qual os poderes legislativo e judiciário se tornaram reféns do executivo. As modifições resultantes estenderam o mandato presidencial, centralizaram expressivamente o poder nas mãos do presidente ferindo o sistema de freios e contrapesos.

O sistema político se deteriorou de uma democracia pactuada em seu pluralismo limitado, em um sistema semiautoritário/pseudemocrático, no qual o poder foi exercido cada vez mais fora das instituições da democracia. Divisão de poderes, mecanismos de freios e contrapesos, independência do Judiciário dentre outros dispositivos democráticos foram sendo desgastados por Hugo Chavez.

Terceiro ato: a ditadura madurenha

 Com a morte de Chavez, o seu sucessor Nicolás Maduro, recrudesceu ainda mais o regime, perseguindo violentamente os opositores, com o apoio das cortes supremas, mantendo seus principais adversários fora do jogo democrático das eleições.

As Forças Armadas e as polícias dão cobertura as ações déspotas do governo, no qual os direitos básicos são constantemente violados. As liberdades liberais clássicas há muito tempo deixaram de ser garantidas à oposição política. Esta sofre constante perseguição e prisões de seus líderes são executadas a revelia do estado de direito. Os princípios poliárquicos foram rasgados pela ordem autoritária vigente, somado a isso a corrupção do governo centralizador, a economia em frangalhos, uma inflação incontrolável, miséria, fome, violência descontralada e forte conluio com o narcotráfico. Sendo esta a realidade da Venezuela autoritária.

Segundo o Democracy Index de 2022, a Venezuela foi o país da América Latina que mais recuou em seu índice de regime político. Entre 2017 e 2021, o recuo foi na ordem de 45,4%, passando, junto de Cuba e Nicarágua, a ser o país mais autoritário das Américas. O apoio do Lula e do famigerado Foro de São Paulo é um sinal mais do que claro do que pode se tornar, a médio prazo, todo o contexto territorial da América Latina. Dizer que há democracia na Venezuela é um escárnio e um sinal de perigo que não pode ser desprezado.

José Maria Nóbrega,  doutor em Ciência Política pela UFPE; professor associado da UFCG

 

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