De repente, dei-me conta da liberdade que me reserva este privilegiado espaço guardador de "desabafos". O colunista se obriga ao ritmo quinzenal - mas não escapa de "faltas", sem ser repreendido - e escolhe o tema, sem abusar da boa vontade do leitor. Diz o que lhe dá na telha. Um privilégio. Ou "um apanágio", como disse 'Sr. Microfone', em sua barraca no Mercado São José, idos dos anos 1980, ao receber professores de Serviço Social e Economia, da UFPE. Reza um rodapé da história do carnaval recifense que tal grupo de acadêmicos veio a ser da turma de parteiros que trouxeram ao Reino Momesco o 'Bloco Nem Sempre Lily Toca Flauta', que estreou em 1989 - ou "regressou", pois já teria existido em 1915. Renascido sob a liderança do Prof. Gerson Victor, nosso guia do encontro com o bem informado 'Microfone'. Não esqueço a cena do anfitrião, sentado, lendo o JC e tendo a leitura interrompida pela chegada dos farristas; gostava de falar sobre política internacional. Um homem gentil o Sr. Abdenágo de Souza Leite, que também era compositor, inclusive de samba-canções e marchinhas de carnaval, o que agora pesco no texto de Clóvis Campêlo (Blog 'Vermelho - A esquerda bem informada'). [https://vermelho.org.br/2012/06/01/microfone-do-mercado-de-sao-jose/].
Pois é, política internacional está em nossa conversa de hoje, puxada da releitura do capítulo final de 'Stalin - A história de uma tirania', Isaac Deutscher, Tomo 2, Editora Civilização Brasileira, 1970: 'Pós-Escrito: Últimos Anos de Stalin'. [E aqui defendo o valor de releituras. Pra quê alimentar a ânsia de ler tudo que é livro recentemente lançado, inclusive e-books, "de interesse"? Melhor ser seletivo, poupando o cansado cérebro, e ter o prazer, que tive, de revisitar tempos de Stalin; e de ler dois artigos - Gerd Bossen e Alexander Khar, respectivamente - de 'A Rússia no início da Era Putin', Cadernos Adenauer, 2000, no. 5, Konrad Adenauer Stiftung].
Não sabíamos, ainda, em 1980, o quê nos reservariam o final dos anos oitenta e o inicio dos noventa. Depois de conhecermos e sentirmos, via nossos pais e livros, o horror da 2ª. Guerra Mundial e do inominável ataque nuclear norte-americano a Hiroshima e Nagasaki, e desmanchadas esperanças e ilusões iluministas de sociedades igualitárias, a realidade trouxe mais lições. Deutscher, com maestria e surpreendente serenidade, nos deu precioso relato de como Stálin foi capaz de, com mão de ferro, recuperar - a alto preço humano - a Mãe Rússia e tornar forte uma economia destroçada. O "primeiro censo demográfico do pós-guerra" (1959) revelava: a fração populacional com idade de mais de 18 anos ao fim da Guerra, inclusive os "grupos etários que haviam pegado em armas", "havia apenas 31 milhões de homens e "52 milhões de mulheres". Sobreviventes, "milhões de mutilados e inválidos". "Toda uma geração tinha perecido". Stalin foi capaz de extrair leite de pedra. Para isso, contou também com o "caráter soviético" de carregar "coragem cívica" e "docilidade amedrontada". "Os sobreviventes da Batalha de Moscou e os vencedores de Stalingrado e Berlim voltaram para casa sentindo-se à altura de qualquer tarefa ou sacrifício que tivessem de enfrentar". Para recalcitrantes, reedições de campos de concentração eram parte do castigo.
Depois de 1989 (queda do Muro de Berlim) e 1991 (Dissolução da União Soviética), o mundo já era outro. Mas ainda demorou a admissão, por ativistas de esquerda no mundo ocidental, de que a experiência socialista havia fenecido. O "revisionista" Kruschev é até hoje vilipendiado, mas por grupos cada vez menores.
No cenário atual, Putin e Prigozhin - incidentalmente, dois nomes próprios que se fazem engraçada cacofonia em nossa língua-mãe - são hodiernos exemplos de estranhos atores do poder russo, e nada têm a ver com "construção socialista". Trata-se de poder a todo custo, em um cenário de crime, traições e opressão - com padrão novelesco policial. Vladimir Putin transitou "meteoricamente" de anônimo membro do serviço secreto soviético a presidente, em março de 2000 (Gerd Bosen, Cadernos Adenauer 2000), então recebendo a avaliação de que "não se sabe muito sobre o novo presidente da Rússia, sobre suas ideias, opiniões e planos". O tal de "cheque em branco". Hoje, continua um cérebro misterioso, mas audaz e déspota, há 23 anos no poder. Arrisco dizer que ele possivelmente delira com o desejo de recuperar, geograficamente, a antiga União Soviética... Já Prigozhin, o mais recente e perigoso adversário de Putin, foi premiado - em 23/08/2023 - com morte em explosão de um avião Embraer, peça brasileira, em pleno vôo. Que azar...
Tarcisio Patricio, doutor em Economia. Professor da UFPE, aposentado.